A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) instituiu recentemente o Regime FÁCIL por meio das Resoluções CVM nº 231 e 232, uma iniciativa para simplificar o acesso de Pequenas e Médias Empresas (PMEs) ao mercado de capitais. Orientadas para companhias com faturamento de até R$ 500 milhões, as novas regras flexibilizam processos de registro, ofertas públicas e relatórios.

O Regime FÁCIL permite que empresas estruturem "ofertas diretas" sem a necessidade de registro na CVM ou de intermediação de um coordenador, limitadas a R$ 300 milhões a cada 12 meses.

Essa simplificação abre canais mais diretos para a captação de recursos, ampliando a liquidez no mercado de crédito privado (private equity) ao expandir o universo de empresas aptas a receber investimentos e oferecer rotas de saída mais claras para fundos e investidores.

Embora a flexibilização possa gerar um ambiente propício à inovação e à criação de novos modelos de negócios nos mercados de capitais, as novas normas regulatórias geraram frustração entre entidades do mercado de ativos digitais por não incluírem modelos de captação baseados na tokenização de ativos reais (RWA).

Livia Calandra, Head da MB Startups, afirmou ao Cointelegraph Brasil que "o FÁCIL ainda está ancorado em processos e obrigações herdados da lógica tradicional, baseados em intermediários, custos operacionais elevados e infraestrutura legada."

Segundo a executiva, a exclusão dos ativos tokenizados do Regime FÁCIL resulta na perda de ganhos de eficiência, segurança e simplicidade proporcionados pela tecnologia blockchain:

“Na prática, o Regime FÁCIL flexibiliza papéis e responsabilidades no modelo tradicional, mas não representa uma convergência regulatória com as inovações trazidas pelos ativos tokenizados."

A exclusão dos ativos digitais do Regime FÁCIL foi uma deliberação do colegiado da CVM. Anna Lucia Berardinelli, sócia da área de ativos digitais, blockchain e Web3 do escritório Villemor Amaral Advogados, observou que associações e empresas do setor haviam apontado “oportunidades relevantes” na incorporação dos ativos digitais ao regime durante o período de consulta pública das Resoluções CVM nº 231 e 232.

“Essas sugestões não foram acolhidas na versão final da norma, o que mantém os caminhos da tokenização e do mercado tradicional ainda distantes," acrescentou a advogada.

Berardinelli explicou que a CVM optou por concentrar a possibilidade de listagem e negociação dessas ofertas em entidades já existentes, “sem abrir espaço para novas plataformas, nem para modelos alternativos baseados em DLT.”

“Trata-se de um avanço, mas ainda limitado em termos de abertura à inovação tecnológica,” disse a advogada.

FÁCIL pode abrir precedente regulatório em favor da tokenização

Apesar de os ativos digitais terem sido excluídos da regulamentação, Arthur Coelho, CEO da Tokeniza, identifica uma convergência entre o Regime FÁCIL e os princípios do mercado de criptoativos. Segundo ele, o Regime FÁCIL estabelece precedentes que podem influenciar a abordagem da CVM na regulamentação dos ativos digitais:

“A tokenização é o ‘trilho’, não o ‘trem’. O Regime FÁCIL moderniza as regras do ‘trem’ (a emissão do valor mobiliário). A tecnologia pode ser o trilho sobre o qual essa emissão simplificada ocorre, garantindo segurança, transparência e liquidez por meio de DLT (tecnologia de registro distribuído).”

À medida que adota o princípio de “mesmo ativo, mesmo risco, mesma regra”, a CVM abre espaço para que plataformas digitais sejam utilizadas como infraestrutura para as emissões do Regime FÁCIL no futuro, afirma Coelho:

“O Regime FÁCIL é um laboratório valioso. Estabelece um precedente claro de que a regulação pode e deve ser flexível, e os aprendizados obtidos com ele certamente influenciarão a construção de um marco regulatório definitivo para valores mobiliários tokenizados no Brasil.”

Mercado de crédito privado está em expansão no Brasil

Livia Calandra, da MB Startups, destacou que, independentemente das nuances regulatórias do Regime FÁCIL, o mercado de tokenização e crédito privado no Brasil registra um crescimento expressivo no volume de captações. As emissões via crowdfunding, reguladas pela Resolução CVM nº 88, atingiram R$ 200 milhões em 2023 e superaram R$ 1 bilhão em 2024.

“Somente o Mercado Bitcoin, em 2024, distribuiu mais de R$ 500 milhões em produtos tokenizados, abrangendo mais de 10 categorias de ativos e impactando diretamente mais de 58 mil clientes desde o início das operações”, afirmou a executiva.

A tendência de expansão desse mercado se mantém neste ano. Apenas no primeiro trimestre, o valor das emissões de crowdfunding já representava 55% do total agregado de 2024, revelou Calandra: “R$ 0,79 bilhão frente aos R$ 1,43 bilhão do ano anterior inteiro.”

O Mercado Bitcoin também se consolidou como uma das cinco maiores empresas do mundo em tokenização de ativos de crédito privado, com um volume total de aproximadamente R$ 1,5 bilhão em ativos tokenizados, de acordo com dados da RWA.xyz.

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Gráfico do volume de crédito privado tokenizado emitido pelo Mercado Bitcoin. Fonte: RWA.xyz

Arthur Coelho, CEO da TOKENIZA, destacou o pioneirismo do Brasil nesse mercado, antecipando uma tendência global. Recentemente, a corretora americana Robinhood passou a ofertar crédito privado em sua plataforma por meio de tokens RWA.

Segundo Coelho, "o maior benefício da tokenização de crédito privado é fracionar investimentos de alto valor em partes menores e acessíveis", o que democratiza o acesso e aumenta a liquidez dessa classe de ativos, anteriormente restrita a investidores com maior capacidade de aporte financeiro:

“Um dos maiores problemas do crédito privado é a falta de liquidez, com investimentos que podem levar de 5 a 10 anos para dar retorno. Tokens negociáveis em plataformas 24/7 podem mitigar esse problema, permitindo que investidores saiam de suas posições antes do desinvestimento final do fundo.”

Ao beneficiar igualmente empresas e investidores, “a tokenização tem o potencial de transformar o mercado de crédito privado no Brasil, tornando-o mais acessível, líquido e dinâmico", conclui Coelho.

O Regime FÁCIL entra em vigor em janeiro de 2026 e foi a última medida de impacto da CVM antes da renúncia de João Pedro Nascimento, presidente da autarquia. Conforme noticiado pelo Cointelegraph Brasil, Nascimento deixou o cargo na última sexta-feira, 18 de julho, dois anos antes do final de seu mandato, alegando motivos de ordem pessoal.