O Banco Central (BC) está disposto a flexibilizar as diretrizes propostas na Consulta Pública 111/2024 para permitir que os usuários brasileiros possam comprar, vender ou trocar criptomoedas em livros de ordens globais de exchanges baseadas no país ou no exterior.
Em participação no evento "Stablecoins: Casos de uso no câmbio, pagamentos e mercado financeiro", promovido pela ABToken no Rio de Janeiro, o assessor sênior do Departamento de Regulação Prudencial e Cambial do BC, Eduardo Liberato, afirmou que, ao contrário da norma adotada pela instituição para regulação dos mercados financeiros, as consultas públicas 109, 110 e 111 têm um “caráter exploratório.”
“A integração com o mercado fará com que a gente revise e repense o que foi proposto", afirmou Liberato, acrescentando que o BC continua aberto ao recebimento de sugestões e contribuições de empresas e associações do setor, mesmo após o encerramento formal do período de apresentação de propostas em 28 de fevereiro deste ano.
A proposta do BC e o alerta das entidades do setor
A vedação à adoção de livros de ordens globais por parte de Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (VASPs) operantes no Brasil decorre do artigo 76-A da Consulta Pública 111/2024, que trata do enquadramento das stablecoins em operações de câmbio.
No inciso I, o BC propôs a submissão de operações de compra, venda, troca, transferência ou custódia de stablecoins lastreadas em moedas estrangeiras, independentemente da jurisdição dos titulares e das PSAVs, às regras vigentes para operações cambiais.
Considerados pelos players do mercado como fundamentais para garantir a liquidez e o preço justo das criptomoedas, os livros de ordens globais das exchanges seriam diretamente impactados pela proposta.
Durante o evento, representantes do setor manifestaram preocupação quanto aos impactos de uma regulação que limite o acesso ao livro de ordens global, apontando para um potencial encarecimento entre 3% a 5% do Bitcoin (BTC) e de outras criptomoedas no mercado brasileiro. A principal tese é que a restrição à operações globais pode comprometer a liquidez e introduzir custos adicionais às PSAVs e, consequentemente, aos usuários.
Cesar Carvalho, Coordenador de Relações Governamentais da ABToken, destacou a natureza descentralizada do mercado de criptomoedas para justificar a necessidade de livros de ordens globais:
"Temos um problema de liquidez no mercado de ativos virtuais, que é nítido, por isso que esse mercado foi feito para ser descentralizado. Ele busca soluções globais. Um livro de ordens global é uma tentativa de solucionar a falta de liquidez regional.”
Segundo Carvalho, vincular operações de livros de ordens globais ao mercado de câmbio pode "afetar a liquidez interna e, por sua vez, o acesso do mercado brasileiro como um todo", elevando o preço dos ativos no mercado doméstico.
Na contribuição encaminhada ao BC, a ABToken argumenta que transações realizadas por meio de livros globais, que não possuem um propósito claro de transferência internacional ou onde as contrapartes não são conhecidas, não deveriam ser categorizadas como transações cambiais.
Em participação em outro painel, Thiago Sarandy, diretor de assuntos Jurídicos e regulatórios do Brasil e de El Salvador da Binance, acrescentou que, além de garantir maior liquidez e uma formação de preço justa, livros de ordens globais dificultam eventuais tentativas de manipulação de mercado e evitam spreads.
Citando o exemplo da Coreia do Sul, Sarandy mencionou riscos de que o mercado brasileiro venha a testemunhar uma "arbitragem regulatória absurda" após a entrada e vigor da regulação:
“Na Coreia do Sul, o livro de ordens é local. Como resultado, as transações de compra e venda de Bitcoin, por exemplo, sofrem via de regra um prêmio de 3% a 5%.”
No caso de criptomoedas com menor liquidez, como memecoins, o prêmio pode ser ainda maior.
Sarandy também advertiu que uma regulação restritiva como a proposta pelo BC nesse caso específico pode incentivar os investidores de criptomoedas a adotar plataformas descentralizadas.
“Com a descentralização, a visibilidade diminui muito para o regulador. Os instrumentos que o regulador tem de KYC e informações mais profundas sobre os usuários, vêm de players centralizados", ressaltou.
Referindo-se ao reajuste do IOF anunciado recentemente pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Sarandy também lançou um alerta sobre a possibilidade de criação de novos impostos sobre transações que configurem operações de câmbio:
"Na nossa interpretação, há um risco que não é baixo, que com uma simples canetada o book global seja tributado com IOF sob as regras do mercado de câmbio."
Isso resultaria em um custo adicional para o usuário, independentemente do volume transacionado.
Por fim, Sarandy explicou que mesmo exchanges que operam com livros locais serão afetadas na forma como a regulação foi proposta, caso utilizem provedores de liquidez e formadores de mercado globais.
Flexibilização regulatória em pauta: a posição do Banco Central
Em sua manifestação, Liberato reconheceu os benefícios do livro de ordens global e mostrou-se aberto à flexibilização regulatória:
"A gente enxerga que o livro global de negociações é um instrumento muito bom para a qualidade da formação de preços. Os spreads são bem mais estreitos, ele de fato traz eficiência.”
O regulador enfatizou que o BC ainda não tomou uma decisão definitiva sobre a questão e estimulou os players do setor a se engajar na reformulação da proposta. “Estamos abertos ao recebimento de sugestões relacionadas a esse tema", afirmou.
Embora o BC não abra mão de obter informações sobre a transmissão de transferências e pagamentos que utilizem stablecoins para fins estatísticos, de balanço de pagamentos e prevenção de risco, “há um grande espaço para a flexibilização", garantiu Liberato.
A postura do BC no caso dos livros de ordens globais mostrou-se similar à questão da autocustódia de ativos digitais lastreados por moedas estrangeiras. No mesmo evento, Liberato afirmou que o órgão regulador vai rever a proibição à transferência de stablecoins para carteiras autocustodiadas, após diálogos produtivos com as entidades do setor.