A Consulta Pública 111/24, proposta pelo Banco Central do Brasil visando enquadrar stablecoins no mercado de câmbio brasileiro, vem acumulando desafetos pelo país e atraído críticas até mesmo da Associação Brasileira de Câmbio (ABRACAN).
Segundo reportagem do Valor Econômico, a associação pretende questionar as normas propostas pelo BC que acabam restringindo as empresas de câmbio a atuar com stablecoins já que somente as prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs) vão poder operar neste mercado.
“É um segmento do mercado importante, que tem uma vasta experiência em termos de prevenção à lavagem do dinheiro e que pode se agregar na recepção dos novos entrantes, então basicamente queremos que haja um alinhamento entre a 109 e a 111 para que as corretoras sejam incluídas”, afirmou ao Valor, Fernando Marques Borges, diretor da Abracam.
Além da ABRACAN, exchanges de criptomoedas também estão se posicionando contrarias as normas que o BC busca estabelecer. Entre elas há diversas demandas contrárias ao proposto pelo regulador, desde o uso de book restrito ao Brasil, até a adoção de pares em BRL em vez de pares em USDT ou USDC.
Bancos tradicionais também estão insatisfeitos com as normas previamente editadas pelo BC e argumentam que elas podem restringir um mercado em expansão que, ao invés de migrar para o ambiente regulado, irá continuar operando fora da regulamentação caso as normas continuem restritivas.
Até mesmo Paolo Ardoino, CEO da Tether, a maior stablecoin do mercado, criticou o BC. Em uma entrevista ao Cointelegraph ele disse que o BC está cometendo um erro ao reprimir o mercado de stablecoins no país, principalmente com a regra 76-N, da CP 111, que prevê a proibição da transferência de stablecoins para carteiras de autocustódia.
"Acredito que é um erro impedir que as pessoas tenham controle sobre seu próprio dinheiro. Sempre haverá resistência contra esse tipo de restrição. Se um governo tentar impor um sistema completamente controlado pelo Estado, as pessoas inevitavelmente buscarão maneiras de escapar desse controle.
O melhor caminho para um país é trabalhar em conjunto com a população, garantindo liberdade de escolha. Dessa forma, o dinheiro continua circulando dentro da economia formal. Se um sistema for criado para que o governo tenha controle absoluto sobre os recursos financeiros das pessoas, o resultado será uma grande evasão de dinheiro do sistema oficial—e isso é extremamente prejudicial para a economia.
Quando isso acontece, surgem economias paralelas, que podem desestabilizar o país. A Itália é um exemplo disso, e os impactos desse fenômeno são muito negativos", disse Ardoino.
Em uma reportagem recente do Cointelegraph, advogados tributaristas alertaram que caso as 3 Consultas Públicas atuais se tornem lei, sem modificações, elas podem gerar um efeito conhecido como "Kimchi Premium”, no qual o preço do Bitcoin é de 2% a 10% acima da média global e em momentos extremos, essa diferença já chegou a ultrapassar 50%.
Isso pode ocorrer por um conjunto de fatores que envolve livro de ordens local e o enquadramento de operações com stablecoins no mercado de câmbio, inviabilizando operações com USDT e USDC (que teriam cobrança de IOF), e 'forçando' os usuários para pares em BRL.
Banco Central e o mercado de criptomoedas
No entanto, um dos pontos que mais vem causando 'revolta' na comunidade é o artigo 76-N, que pede o veto da transferência de stablecoins para carteiras como a MetaMask.
"Art. 76-N. É vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativo virtual denominado em moeda estrangeira para carteira autocustodiada." (NR), destaca o documento.
Nas exchanges de criptomoedas e associações com atuação no setor a posição contra a proposta do BC é unânime. Segundo Rocelo Lopes, da SmartPay, destaca que a proposta é totalmente contrária aos anseios do mercado.
Para Lopes, o Banco Central está lá para tentar proteger o máximo possível o mercado, ter boas práticas, tentar reduzir, se não a zero, o problema de lavagem de dinheiro, entre outras coisas problemáticas que podem ser usadas com criptomoeda.
Na contramão disso, segundo ele, há as empresas de criptomoeda que estão adotando excelentes políticas, que estão adotando ferramentas para coibir o uso da tecnologia para coisas ilegais.
"Na SmartPay nós já estamos colocando dados referente à transação dentro da blockchain, informações on chain para que o regulador possa ter acesso quando ele bem entender estando a SmartPay aqui ou não. Isso mostra a transparência e mostrar boas práticas que a gente vem cumprindo. Mas tirar do usuário o direito de ser o custodiante eu acho que não pega bem eu acho que esse não é o caminho. Acho que isso estaria matando o mercado", disse.
Além disso, Lopes discorda da posição do Banco Central de responsabilizar as corretoras pelas stablecoins de origem ilegal que são transferidas para elas.
"Um ponto que eu critico bastante é a obrigação das corretoras assumirem responsabilidade pelo que está sendo transferido para elas. É possível usar ferramentas como a Chainalysys ou outras semelhantes para validar tanto as transações que chegam quanto as que saem.
No entanto, do ponto de vista de custódia, ela deve sempre permanecer com o indivíduo. Isso garante proteção contra hacks, abusos por parte de corretoras e até mesmo contra bloqueios ilegais de recursos. Retirar esse direito do usuário significa ir na contramão dos princípios do sistema", destacou Lopes.
Deputados também vem se mobilizando contra as propostas do BC. A deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) apresentou um Projeto de Lei nº 311/2025 que visa assegurar o direito dos cidadãos à autocustódia de ativos virtuais, como Bitcoin, stablecoins e outras criptomoedas, sem a necessidade de intermediários financeiros.
Segundo o projeto, a autocustódia permite que os indivíduos mantenham o controle direto de seus ativos digitais, armazenando-os em carteiras pessoais, sem depender de corretoras ou instituições financeiras. O PL 311/2025 destaca que esse direito está alinhado a princípios constitucionais fundamentais, incluindo:
- Direito de propriedade (art. 5º, XXII);
- Livre iniciativa e liberdade econômica (art. 1º, IV, e art. 170);
- Privacidade e proteção de dados pessoais (art. 5º, X e XII);
- Inviolabilidade patrimonial e registros digitais, abrangendo os ativos digitais.
O PL de Zanatta afiram que quer proteger expressamente o direito à autocustódia, impedindo que normas infralegais restrinjam ou impeçam a transferência de ativos virtuais para carteiras privadas. Além disso, o PL visa impedir qualquer obrigatoriedade de conversão de criptoativos para CBDCs, garantindo que os cidadãos mantenham total controle sobre seus bens digitais.
Banco central do Brasil 'sente a pressão'
O BC está atendo ao grande descontentamento com as normas, que ganharam ainda mais força com a eleição de Trump e a posição 'pró-cripto' dos EUA. Em um debate realizado na Câmara dos Deputados no final do ano passado, Renato Kiyotaka Uema, que era chefe adjunto do Departamento de Regulação, admitiu que a proibição de transferências de stablecoins para carteiras de autocustódia pode ser revisada.
Segundo Uema, a proibição busca alinhar essas operações às regras do câmbio tradicional, além de combater a opacidade nas transações.
“Transferências para carteiras digitais poderiam aumentar a opacidade. O regulador precisa ser rígido para evitar riscos tributários e de lavagem de dinheiro”, justificou Uema. No entanto, ele afirmou que a consulta pública está aberta a sugestões que possam reduzir esses riscos. “Se houver soluções viáveis, a área técnica do BC revisará sua posição para interferir o mínimo possível no mercado”, acrescentou.