Com o objetivo de prevenir o delito de Lavagem de Dinheiro, foi aprovado nesta semana pelo Senado Federal do Brasil o Projeto de Lei nº 3.951/19, cuja proposta é a edição de regras e condições para o uso de dinheiro em espécie. Pretende-se: i) a proibição do uso de dinheiro em espécie em transações comerciais ou profissionais com montantes que superem 10 mil reais; ii) a proibição do transporte de valores que superam 100 mil reais; e iii) a proibição da posse de montante superior a 300 mil reais. A proposta segue agora para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) para decisão terminativa, quando poderá ser encaminhada à análise da Câmara.

É sabido que o Estado, para prevenir a lavagem de dinheiro, adota medidas para apreender e confiscar moeda em espécie caso identificado sua origem ilícita ou quando o indivíduo não possui explicação plausível quanto à sua origem. Todavia, até o presente momento, a abordagem regulatória utilizada para essa finalidade sempre ocorreu mediante a exigência da obtenção de informações pelos intermediadores dessas operações financeiras. É o caso dos bancos e outras entidades obrigadas, que são exigidos pelo Estado a coletar e armazenar os documentos de seus clientes e informar todas as transações que julgam serem suspeitas.

Nesse contexto, caso uma transação seja identificada como “suspeita” por esses intermediários, a operação acaba sendo informada ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e pode ser objeto de investigação. Mesmo assim, se for identificada a origem e destinação lícita desses valores, ainda que em espécie, nenhuma sanção é aplicada ao indivíduo. Ou seja, as transações em espécie, apesar de menos comuns dos que as realizadas dentro do sistema bancário, continuam sendo lícitas. 

É nesse aspecto que o mencionado projeto de Lei chamou maior atenção. Com o alegado objetivo de combater o delito de lavagem de dinheiro, o Estado pretende dar um novo passo em busca do controle das transações financeiras realizadas pelos indivíduos: pretende-se proibir e punir aqueles que usam de dinheiro em espécie, mesmo que com origem e destinação comprovadamente lícita. No caso, pretende-se a aplicação de uma multa de 20% do o valor caso seja identificado algum indivíduo transacionando, transportando ou guardando cédula de papel em desacordo aos limites mencionados.

Evidentemente que o combate à lavagem de dinheiro constitui motivo legítimo para a edição de determinadas leis. Todavia, a limitação ou proibição do uso de dinheiro em espécie causa enormes efeitos colaterais, sobretudo no que tange à liberdade humana – em geral – e, sobretudo, a de expressão.

Para melhor compreensão, é necessário observar o que paralelamente ocorre na China, nação expoente na adoção daquilo que se chama de “autoritarismo tecnológico” (o uso da tecnologia como ferramenta para exercício do poder pelo Estado sobre seus administrados). Essa característica ficou conhecida principalmente devido ao questionável programa de pontuação social que, mediante o uso de câmeras de monitoramento e um avançado programa de reconhecimento facial, tentam incentivar e reprimir determinadas condutas de seus cidadãos.

A questão que toca ao dinheiro em espécie é que Estados com características autoritárias podem buscar controlá-lo para vetar a liberdade individual e, principalmente, a mencionada liberdade de expressão.

No caso chinês já ocorreu o seguinte: primeiro, para tentar proibir manifestações políticas contra o governo atual em Hong Kong, puniu-se manifestantes que foram identificados mediante os mencionados dispositivos de reconhecimento fácil. Em uma segunda manifestação política, quando os participantes passaram a adotar máscaras para impedir o reconhecimento, muitos foram identificados mediante a verificação dos cartões de transporte coletivo utilizados para ir ao local onde ocorreu o ato. Na terceira vez – e aqui está o ponto em questão –, foi observada uma longa fila na linha de metrô após as manifestações. Eram os manifestantes adquirindo suas passagens com dinheiro em espécie, em máquinas destinadas àqueles que não possuem o cartão de transporte, sobretudo turistas. No caso, o uso de dinheiro em espécie foi método encontrado por aqueles que queriam expressar sua opinião contrária ao governo daquele país para não sofrer represálias pelo ato.

Esse é um exemplo de como a monitoração do uso do dinheiro pode auxiliar governos autoritários a impedir a liberdade de expressão, ou como o anonimato do dinheiro em espécie pode ser útil para a proteção do indivíduo. Mesmo assim, importante lembrar que o Yuan digital, uma versão digitalizada da moeda física daquele país, está em fase de testes e será lançado em breve. Trata-se de uma CBDC (Central Bank Digital Currency), ou seja, uma criptomoeda emitida pelo Estado e com o objetivo de substituir as cédulas físicas do país. 

Se isso ocorrer, não haverá hipótese em que os as mencionadas manifestações contra o governo possam ser realizadas sem a identificação – e punição – de seus participantes. É dizer que a liberdade de expressão, em governos autoritários ou que apresentem tendência nesse sentido, pode se minada pelo desaparecimento do dinheiro em espécie. 

Além do problema da liberdade de expressão, há outros. Também no caso chinês especula-se que o Yuan digital terá prazo de validade. Ou seja, com o pretexto de estimular o consumo e a economia, o governo poderá exigir que o gasto do dinheiro seja realizado até determinada data. Em outras palavras, poupar dinheiro poderá ser proibido. Se tal controle é tecnicamente possível, até mesmo “apagar” o dinheiro dos “inimigos do Estado” – ou do governo atual – também o será. As possibilidades são infinitas.

Apesar da posição geográfica, esse paralelo não é tão distante do que já experienciou o Brasil no passado. O Estado brasileiro já foi acusado anteriormente de adotar práticas que também se adequam ao conceito de “autoritarismo tecnológico”. Isso ocorreu em 2019, quando o Governo Federal, mediante decreto e sem consulta pública, determinou a criação do “cadastro base do cidadão”, onde seriam armazenados, em um só local, os dados de todos os cidadãos brasileiros, desde registros de saúde até informações biométricas. Esse evento foi reconhecido pela mídia internacional como um atentado contra a privacidade e a liberdade. Mesmo assim, o sistema está em operação.

Esse evento não foi o único. Dos outros que poderiam ser citados, o mais grave ocorreu nesta semana: o Supremo Tribunal Federal, mediante requisição da Procuradoria-Geral da República (PGR), bloqueou uma chave PIX que estaria sendo utilizada para receber doações para bancar manifestações contra Senado Federal e o STF. Ou seja, controla-se o dinheiro para impedir manifestações daqueles que se opõem a membros do Estado. 

O PIX vêm sendo referenciado constantemente como um dos primeiros passos para o fim do dinheiro em espécie no Brasil. Seu bloqueio somente revela a capacidade de o Estado incrementar seu controle, sobretudo limitar a liberdade dos indivíduos. Nessa esteira, importante lembrar que o Brasil também planeja a criação de sua moeda digital (CBDC): o real digital. O objetivo é, também, substituir o papel-moeda. O fundamento – evidentemente – não é a praticidade nas transações, mas o incremento de controle do Estado sobre sua moeda. Ainda que esse controle possa vir acompanhado da justificativa de combate à criminalidade, os efeitos práticos revelam capacidade muito além dessa: pode ser a ferramenta que torna possível comportamentos autoritários. É de dourar a face de George Orwell, que ainda em 1949 escreveu o livro "1984", onde discorreu sobre o controle absoluto do Estado com seus cidadãos mediante o monitoramento (Big Brother). 

Eventos como esse nos lembram do papel fundamental que o dinheiro em espécie exerce em uma sociedade, mas que, ao que tudo indica, tem prazo para deixar de existir. Ainda, nos relembram do fundamento da criação do Bitcoin e reforçam sua importância. Se o desenvolvimento tecnológico é utilizado pelo Estado para limitar a liberdade humana, a mesma tecnologia pode ser utilizada pelo indivíduo para proteger sua liberdade. 

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