*Em colaboração com Antonio Carlos Visentini, analista da Wesearch.
Eike Batista, o empresário que ascendeu ao topo da Forbes e protagonizou uma das maiores derrocadas financeiras da história do Brasil contemporâneo, ensaiou um retorno triunfal ao mercado em 2025, desta vez com uma aposta ousada no universo do agronegócio e das criptomoedas.
Em 25 de fevereiro, em um evento fechado para convidados em seu restaurante na zona sul do Rio de Janeiro, Eike voltou à cena para apresentar o projeto da Supercana, visando a produção de etanol e biomassa a partir de uma variedade geneticamente modificada de cana-de-açúcar.
Na ocasião, além da proposta de inovar no agronegócio, o empresário anunciou sua estreia no mercado de criptomoedas, com o lançamento do token EIKE.
Apresentado como um token RWA, supostamente atrelado à produção da Supercana, o EIKE foi implementado na blockchain da Solana (SOL) com o objetivo de levantar US$ 100 milhões em uma oferta inicial de moedas (ICO) para financiar o módulo 2 do projeto, cujo orçamento total é de US$ 600 milhões.
Passados quatro meses desde o anúncio do retorno de Eike ao mundo dos negócios, a análise on-chain do token EIKE revela um desempenho pífio na pré-venda, muito aquém das expectativas iniciais do empresário e de seus parceiros na empreitada. Nesse meio tempo, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) interveio, classificando o ativo como valor mobiliário e suspendendo suas negociações no Brasil.
Supercana e a Aposta na Tokenização de Ativos Reais (RWA)
Acalentado há anos por Eike, o projeto da Supercana reside na produção de etanol e biomassa a partir de uma variedade de cana-de-açúcar geneticamente modificada. Segundo o white paper do projeto, essa nova variante promete ser até três vezes mais eficiente na produção de etanol e doze vezes mais produtiva na geração de biomassa em comparação com as espécies convencionais, além de apresentar maior resistência a pragas e à seca.
A tecnologia por trás da proposta de aprimoramento genético da cana-de-açúcar não é nova, tendo sido desenvolvida há mais de 20 anos por Luis Claudio Rubio e Sizuo Matsuoka, que hoje são os controladores efetivos da BRXe (Brazil Renewable X), a empresa juridicamente responsável pelo projeto.
Com bens bloqueados pela Justiça, Eike tem limitações para aportar capital em novos projetos, como no caso da BRXe. Impedido de exercer controle societário na empresa, oficialmente Eike atua apenas como promotor da iniciativa e tem direito a uma subscrição futura condicionada à performance, em uma estratégia para manter alguma influência sem assumir riscos financeiros diretos devido à sua situação perante à Justiça.
Para viabilizar as operações da BRXe, Eike e seus parceiros montaram um modelo de negócios baseado em dois módulos. O primeiro foi financiado por vias tradicionais, com um aporte de US$ 500 milhões liderado por Mário Garnero, da Brasilinvest, com participação do Abu Dhabi Investment Group (ADIG) e do fundo General Finance.
O segundo módulo surpreendeu o mercado por marcar a estreia do antes cético Eike no mercado de criptomoedas, no segmento de ativos reais (RWA). Tecnicamente, tokens RWA são a representação digital de ativos físicos ou direitos jurídicos negociáveis por meio da tecnologia blockchain.
O white paper do projeto declara que o EIKE é um token RWS (Real World Sustainability Token). Na prática, o token seria uma variante sustentável de ativos reais atrelados à produção da Supercana.
Contudo, a advogada especializada em tokenização de ativos, Marcella Zorzo, aponta a ausência de “um contrato claro e legalmente vinculante conectando os tokens a ativos da BRXe":
“Diferente de RWAs legítimos, onde os investidores possuem um direito reconhecível sobre imóveis, commodities ou fluxos financeiros auditados, o EIKE Token parece apenas prometer exposição a um mercado sem oferecer garantias contratuais reais. Isso significa que os investidores podem não ter nenhum mecanismo legal para reivindicar participação nos lucros da empresa ou exigir transparência operacional.”
Independentemente da natureza jurídica do token, a BRXe estruturou uma Oferta Inicial de Moedas (ICO) de 100 milhões de unidades do token EIKE na rede da Solana, ao preço fixo de US$ 1 a unidade, com a promessa de participação sobre os lucros futuros do empreendimento. A comercialização do token teve início imediatamente após o anúncio em 25 de fevereiro.
Análise on-chain revela fracasso da pré-venda do token EIKE
Quatro meses após o início da pré-venda, o token EIKE arrecadou um total de 917,15 SOL, equivalentes a aproximadamente US$ 157.000 a preços atuais de mercado, de acordo com um relatório exclusivo da Wesearch, assinado pelo analista Antonio Carlos Visentini, e compartilhado com o Cointelegraph Brasil.
O total levantado até agora na pré-venda do EIKE representa aproximadamente 1,57% da meta de arrecadação de US$ 100 milhões necessária para financiar as operações do módulo 2 do projeto da Supercana.
Visentini analisou os influxos dos dois endereços oficiais do EIKE na Solana disponíveis no white paper do projeto e identificou que o EIKE teve uma “demanda expressiva no início da pré-venda.” O pico foi registrado em 2 de março.
Depois disse, houve uma redução drástica dos aportes, acompanhada da desvalorização do preço do SOL, que afetou o balanço total arrecadado em dólares, conforme o gráfico abaixo.
Contudo, o entusiasmo inicial rapidamente se dissipou, segundo o analista:
“Após este período não houve aportes relevantes ou até mesmo não houve aportes, indicando um obstáculo significativo para que o projeto consiga arrecadar os US$100 milhões de dólares almejados.”
Perfil dos investidores do EIKE
Uma análise das carteiras que interagiram com os contratos do EIKE para investir no projeto da Supercana revela uma alta concentração de recursos em poucas mãos, enquanto a vasta maioria dos investidores contribuiu com valores inferiores a US$ 170.
Das 2.014 carteiras que investiram no token, apenas 10 (0,50%) aportaram valores iguais ou superiores a 10 SOL (US$ 1.700). Essas dez carteiras somam mais de 50% do total arrecadado, revelando um “grau elevado de concentração entre poucos investidores”, de acordo com Visentini.
Ao analisar essas carteiras de maior relevância, Visentini não identificou correlação com
investimentos em outros projetos nem posse de tokens adicionais relevantes, “o que levanta dúvidas sobre o perfil e o histórico dos investidores do projeto.”
De resto, um total de 104 carteiras (5,16%) realizaram investimentos entre 1 e 10 SOL, enquanto a grande maioria fez aportes iguais ou inferiores a 1 SOL (US$ 170).
Esses dados sugerem que, embora Eike tenha declarado a intenção de atrair investidores institucionais no exterior, especialmente no mercado norte-americano, a pré-venda do EIKE ganhou tração, de fato, entre investidores do varejo.
Promessas Ambiciosas: Tokenomics, valuation e o modelo de distribuição de receita do EIKE
A despeito do desempenho comercial aquém do esperado na pré-venda, o white paper do EIKE apresenta projeções de valuation que o colocaria entre os dez maiores ativos digitais do mundo, além de um plano de distribuição de receitas que, na teoria, seria bastante atrativo para os investidores.
Os 100 milhões de tokens disponibilizados para pré-venda representam apenas 10% do suprimento total do EIKE. O restante dos tokens está distribuído da seguinte forma:
79% (790 milhões EIKE): destinados aos fundadores e acionistas, com um período de lock-up de 4 anos.
10% (100 milhões $EIKE): reservados em tesouraria para expansão futura ou recompra programada.
1% (10 milhões $EIKE + 10 milhões SOL): reservados para formar o pool de liquidez inicial do par EIKE/SOL e garantir a estabilidade do preço do token.
Com base nas estimativas apresentadas no white paper, o sucesso do projeto elevaria a capitalização de mercado totalmente diluída (FDV) do EIKE a US$ 63 bilhões até 2028, período estimado para que as operações da BRXe se tornem lucrativas.
Essa projeção é baseada em um EBITDA estimado de US$ 5,9 bilhões de dólares em 2028, multiplicado por um múltiplo EV/EBITDA de 10,5 vezes, considerando a cotação fixa de US$ 1 por unidade de EIKE.
Visentini destaca que essa projeção baseia-se em estimativas apresentadas no white paper, sem maiores detalhes sobre os fluxos financeiros e a capacidade operacional do empreendimento.
O FDV de uma criptomoeda é calculado multiplicando seu preço atual de mercado pelo suprimento total de tokens, incluindo aqueles que ainda não estão em circulação. Essencialmente, representa a capitalização de mercado do projeto se todos os seus tokens fossem emitidos e estivessem em circulação ao preço atual.
Com um FDV de US$ 63 bilhões, o projeto se posicionaria entre as 10 maiores criptomoedas do mercado, ocupando a 7ª posição, logo atrás da Solana, que possui uma capitalização de mercado de US$ 90 bilhões atualmente.
Modelo de governança e recompensas via DAO não tem respaldo legal
O projeto da Supercana foi estruturado como uma DAO (organização autônoma descentralizada), visando garantir segurança e transparência em questões de governança e distribuição de receitas para os detentores do token EIKE.
De acordo com o white paper do projeto, a partir de 2028, quando a BRXe se tornar operacionalmente lucrativa, os investidores que detiverem tokens EIKE em suas carteiras passarão a receber automaticamente, via contratos inteligentes, airdrops mensais de USDC/SOL, proporcionais à quantidade de tokens que possuem e aos lucros auferidos pela empresa.
Considerando que o empreendimento se tornará lucrativo a partir de 2028, o white paper prevê a distribuição de receitas na proporção de US$ 5,08 por unidade do EIKE, com aumento progressivo ano a ano. Até 2031, cada unidade do token poderia gerar US$ 8,14 por dólar inicialmente investido, de acordo com as estimativas da BRXe.
Segundo a advogada Marcella Zorzo, nesses termos o token deveria ser classificado como um valor mobiliário em diversas jurisdições, incluindo o Brasil e os Estados Unidos. O stop order da CVM foi a confirmação disso.
Um detalhe na redação da isenção de responsabilidade legal do projeto expõe a contradição entre a natureza jurídica do token e as promessas dos empreendedores, ao afirmar que o EIKE “não representa um valor mobiliário e que sua compra não confere direitos sobre a empresa, participação societária ou promessa de retorno financeiro garantido.”
Em contrapartida, caso o EIKE seja apenas um “token de utilidade", como alega a BRXe, o “white paper pode estar induzindo investidores ao erro ao sugerir um direito inexistente", alerta a advogada. A ausência de vínculos jurídicos entre o token e as receitas da BRXe poderia configurar fraude financeira contra os investidores.
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Stop order: CVM classifica EIKE como valor mobiliário e suspende negociações no Brasil
Conforme antecipado por Zorzo, em 20 de março, menos de um mês após o anúncio da ICO, o EIKE tornou-se alvo de investigação da CVM.
Em 3 de abril, a autarquia determinou a suspensão imediata das negociações do token, sob a alegação de oferta irregular de valores mobiliários. A deliberação CVM 898 declarou que Eike, Rubio e Matsuoka, assim como as empresas EBX DIGITAL LLC, BRXE GLOBAL HOLDINGS LLC, BRXE BRASIL HOLDINGS LTDA, BRXE USA HOLDINGS LLC e BRXE DUBAI HOLDINGS LLC violaram a legislação vigente por não possuírem autorização da autarquia para ofertar valores mobiliários no Brasil.
Em resposta, a EBX Digital Green, controladora da BRXe sediada no estado de Delaware, nos Estados Unidos, acatou a decisão da CVM, declarando em comunicado à imprensa que o token não seria destinado à venda, distribuição ou comercialização em território brasileiro:
“Este token está em fase de pré-venda internacional e não constitui uma oferta de venda nem uma solicitação de oferta para compra de valores mobiliários ou criptoativos a residentes no Brasil ou em qualquer jurisdição em que tal oferta ou venda seja ilegal.”
Após o stop order da CVM, a empresa implementou um sistema de bloqueio geográfico no site e inseriu um alerta de vedação da oferta a investidores residentes no Brasil, que, no entanto, estava ausente quando do lançamento do EIKE.
A caracterização do EIKE como um valor mobiliário no Brasil sugere que órgãos reguladores de outras jurisdições, como a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC) e a Autoridade de Supervisão dos Mercados Financeiros da Suíça (FINMA), com as quais a BRXe afirma estar em “total conformidade”, venham a corroborar esse status.
Nesse caso, segundo Zorzo, os empresários e entidades envolvidas na oferta do token “podem estar cometendo uma série de infrações.”
Além da oferta de valores mobiliários sem registro – crime sujeito a sanções civis e penais, e de fraude financeira, sob as leis brasileiras e americanas –, a oferta do EIKE não prevê a adoção de mecanismos de identificação de clientes (KYC) e prevenção contra lavagem de dinheiro para efetivar a distribuição de receitas.
“O projeto EIKE Token apresenta sinais alarmantes de irregularidades, que vão desde contradições documentais até riscos regulatórios e jurídicos graves", conclui a advogada, acrescentando ainda que:
“Isso se assemelha a casos anteriores de golpes financeiros que usaram a tokenização para atrair investidores desavisados, prometendo retorno baseado em ativos inexistentes ou indisponíveis. Além disso, a promessa de valorização exponencial do token, sugerindo um aumento de US$ 1 para US$ 63, sem fundamentos sólidos, reforça a possibilidade de que se trata de uma estrutura altamente especulativa e potencialmente fraudulenta.”
Escolhida pela BRXe para lançamento do EIKE, a Solana se tornou o epicentro do mercado de memecoins de celebridades no atual mercado de alta das criptomoedas. Antes do empresário brasileiro, o presidente dos EUA, Donald Trump, utilizou a rede para o lançamento de uma criptomoeda temática.
Lançada às vésperas da cerimônia de posse de seu segundo mandato na presidência dos EUA, o token TRUMP chegou a atingir US$ 73,43, mas atualmente está cotado 82,8% abaixo de sua máxima histórica, de acordo com dados da CoinGecko.