Como parte da estratégia traçada para enfrentar as potências ocidentais a partir da invasão da Ucrânia, Vladimir Putin acumulou US$ 630 bilhões em reservas monetárias internacionais. Putin calculara que uma tal quantia seria suficiente para permitir que ele sustentasse a disputa no campo de batalha sem comprometer totalmente a economia do país, protegendo a Rússia das prováveis sanções a serem impostas pelos seus opositores.
Ao limitar o acesso do banco central russo à grande parte das reservas estrangeiras do país, os EUA e os seus aliados europeus inauguraram uma nova arma de guerra com potencial devastador em um mundo economicamente interdependente A Rússia e Vladimir Putin podem ter sido as primeiras vítimas, mas é de se esperar que o conjunto de restrições impostos pelo que tem sido caracterizado como "militarização das finanças" tenha efeitos de longa duração, afirma artigo publicado no Wall Street Journal na quinta-feira, 3.
Tais efeitos não devem se limitar à esfera econômica, embora nesse primeiro momento o principal questionamento diga respeito à real natureza do dinheiro. Confiar em reservas estrangeiras - e em especial no dólar, a moeda hegemônica do sistema financeiro internacional - tornou-se uma atitude de alto risco para governos e bancos centrais que acumulam reservas em moeda norte-americana.
Embora alguns países tenham voltado a acumular ouro em seus tesouros ultimamente, o metal precioso representa apenas 13% do total de suas reservas. Ao passo que moedas estrangeiras compõem 78% de um total de US$ 14,9 trilhões em reservas internacionais, de acordo com dados do FMI (Fundo Monetário Internacional) apresentados na reportagem.
Na prática, as sanções impostas à Rússia demonstram à comunidade internacional que na verdade o dinheiro pertence àqueles países que originalmente o emitiram - e podem ir a zero caso assim eles decidam, seja lá qual forem suas motivações. As sanções ao Irã já haviam mostrado que manter reservas em dólar no exterior não impede o Tesouro dos EUA de impor sua vontade, pois o uso da moeda norte-americana no exterior já é suficiente para configurar uma violação a eventuais sanções.
O sinal claro enviado a todos aqueles países que mantém reservas em dólares é que a utilidade da moeda norte-americana como reserva de valor depende do beneplácito do governo dos EUA. Se as resevas acumuladas em dólar podem evaporar em momentos de instabilidade geopolítica, justamente quando a dependência do dinheiro torna-se mais urgente para garantir a compra de bens e produtos essenciais, é de se esperar que os bancos centrais parem de acumulá-los.
Então, a preferência tende a recair sobre commodities, cujo lastro baseia-se em produtos tangíveis no mundo real, como ouro, petróleo e gêneros alimentícios. Moedas alternativas também passam a ser uma opção.
Nesse sentido, o caso da Rússia é emblemático: há anos o yuan vem ganhando primazia sobre o dólar em função do alinhamento estratégico entre as duas potências. Aqui, a "militarização das finanças" atinge sua máxima expressão, pois a rivalidade militar ganha correspondência na recomposição das reservas internacionais da Rússia após um longo período de domínio absoluto do dólar.
Até então, a moeda chinesa não se configurava como uma real alternativa ao dólar para a maioria dos países por conta dos riscos envolvidos no controle estatal da política monetária e a ausência de um banco central independente. A partir da guerra na Ucrânia, de certa forma, o dólar torna-se um ativo que oferece riscos semelhantes.
Por enquanto, sua vantagem sobre o yuan é garantida pelo arco de alianças dos EUA, que inclui as principais potencias econômicas mundiais. Por outro lado, o yuan cada vez mais ganha força como moeda alternativa aos opositores dos EUA no campo das relações internacionais, reforçando uma tendência à consolidação de dois blocos opostos de poder tecnológico, monetário e militar.
A importância do controle sobre o sistema financeiro internacional como arma de guerra talvez não seja propriamente uma novidade, mas talvez nunca tenha ficado tão evidente como no atual conflito entre a Rússia e o Ocidente. O papel que as criptomoedas e em especial o Bitcoin (BTC) podem vir a ter como um instrumento monetário descentralizado, não permissionado e não censurável está em aberto.
O financiamento de ações militares e humanitárias em benefício da Ucrânia se opõem ao papel que os reguladores ocidentais pretendem conferir às criptomoedas, qualificando-as como um instrumento para evasão das sanções. Poderia-se até mesmo considerar que ambos estão em lados opostos na guerra contra a Rússia.
Não é o caso. No entanto, estão em lados opostos quando se trata de militarizar ou não as finanças. No caso das criptomoedas, sua natureza descentralizada, anônima e à prova de censura, não permite que governos determinem quais ativos têm ou não valor dependendo daqueles que forem utilizá-los.
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