A queda do mercado de criptomoedas que se iniciou em novembro do ano passado e se aprofundou ao longo de 2022 derrubou diversos setores da indústria, e não foi diferente para os games em blockchain.

Um dos principais fenômenos do ciclo de alta de 2021, o hype do setor de games foi puxado pelo modelo play-to-earn, no qual os usuários são recompensados de acordo com seu desempenho no jogo ao cumprir tarefas específicas.

O sucesso foi tamanho que em economias periféricas, como a venezuelana, a filipina e até mesmo a brasileira, jogos como Axie Infinity (AXS) tornaram-se uma alternativa real para que usuários complementassem sua renda mensal ou até mesmo fizessem do jogo sua ocupação principal.

No entanto, desde que a adoção e a valorização de seus tokens de utilidade e governança atingiram seus picos em novembro do ano passado, ficaram evidentes as falhas do sistema econômico sobre o qual foram construídos. 

Não apenas o Axie Infinity Shards (AXS) e o Small Love Potion (SLP) estão cotados hoje 91% e 99% abaixo de seus recordes históricos de preço, de acordo com dados do CoinMarketCap, como o número de usuários ativos e a receita do Axie Infinity também caíram de forma significativa, de acordo com dados da Messari e do Dapp Radar.

As receitas do Axie Infinity chegaram a US$ 17 milhões por dia em agosto de 2021. No início de junho, estavam reduzidas a US$ 11.000, conforme se pode ver no gráfico abaixo.

Receitas diárias do Axie Infinity 2021-2022. Fonte: Messari

Já o número de usuários ativos diários, que chegou a 744.190 em 26 de novembro último, agora é de apenas 49.740.

Gráfico de usuários, volume negociado e número de transações do Axie Infinity 2021-2022. Fonte: Dapp Radar

As métricas vertiginosamente declinantes do maior sucesso do setor revelam o esgotamento do modelo play-to-earn, mas não o fracasso da indústria de games em blockchain, ou mesmo do próprio Axie Infinity, afirma Luiz Octávio Gonçalves, CEO da DUX, em entrevista exclusiva ao Cointelegraph Brasil:

"Eu acho que os jogos play-to-earn, como o Axie Infinity e vários outros, inauguraram um modelo que dá um start na junção da tecnologia blockchain e da Web3 com games. Praticamente, foram experimentos econômicos para estimular a entrada de jogadores e o desenvolvimento do ecossistema. Alguns desses modelos com certeza foram insustentáveis e estamos vendo o reflexo disso: na quantidade de jogadores ativos em cada jogo e no valor das moedas, por exemplo. O que não quer dizer que não vamos encontrar modelos sustentáveis de unificar o blockchain com os jogos num futuro próximo."

O calcanhar de aquiles da primeira geração de blockchain games reside na insustentabilidade do modelo econômico popularizado pelo Axie Infinity. Basicamente, baseia-se em um sistema dual de tokens em que o valor agregado pelo projeto é distribuído para os usuários através de um token de governança e de um token de utilidade.

O primeiro tem um suprimento limitado e é usado para participar das decisões acerca dos rumos do projeto e para breedar os NFTs (tokens não fungíveis) do jogo. O segundo tem um suprimento ilimitado e serve para recompensar os jogadores pelo cumprimento de tarefas no jogo em si.

À medida que a base de usuários desses jogos se expandia, com mais jogadores sendo recompensados com tokens inflacionários, os desenvolvedores teriam que criar um mecanismo para equilibrar oferta e demanda. No entanto, eles falharam, conforme explica Luiz Octávio:

"Economia é gestão de recursos escassos. Então se temos um suprimento ilimitado, a tendência é ir diluindo o valor dos tokens ao longo do tempo. A lógica é que esses jogos consigam desenvolver mecanismos de estratégia de queima de token ou retirada de token de circulação para viabilizar que os tokens de utilidade dentro do jogo sejam necessários e usados com recorrência e a injeção deles no mercado seja menor do que a queima. Mas não vimos isso acontecer de forma eficiente ainda. Então, é inevitável um jogo em que o supply é infinito e os modelos de queima e retirada de circulação são insuficientes, isso vai fazer com que naturalmente os valores desses tokens tendam a zero."

No caso do líder Axie Infinity, o mecanismo criado para queima do SLP baseava-se exclusivamente na breedagem de NFTs por novos jogadores. No entanto, a equação não fechou, diz Helô Passos, CEO da SP4CE, uma das maiores comunidades do Axie Infinity da América Latina:

"A problemática do Axie é que a queima do SLP estava exclusivamente vinculada à entrada de novos jogadores. Os desenvolvedores não pensaram em um modelo econômico que se sustentasse de outras formas e estão tentando redesenhar isso através da V3, que é essa versão Origin."

Passos afirma que apesar do declínio do AXS e do SLP e da queda de receitas da plataforma, o Axie Infinity ainda mantém uma base de usuários fiéis e será capaz de atravessar o ciclo de baixa do mercado, criando um modelo alternativo que lhe permita manter-se popular, diferentemente de outros jogos desta primeira geração que parecem definitivamente condenados à morte.

Jogos ameaçados

Outros jogos que fracassaram em termos econômicos ao praticamente mimetizar o modelo dual de tokens do Axie Infinity talvez não cheguem vivos ao próximo ciclo de alta

Basicamente, eles sofreram o mesmo mal de distribuir como recompensa uma moeda inflacionária aos jogadores. À medida que o número de usuários crescia, aumentava também a quantidade do token em circulação e, em contrapartida, diminuía a demanda do mercado, provocando a desvalorização não apenas da criptomoeda como do ecossistema como um todo. 

Baseado em uma subrede da Avalanche (AVAX), Crabada (CRA) é praticamente uma cópia do Axie Infinity. Embora tenha sido capaz de atrair uma boa base de usuários, teve vida curta. Com o aumento da oferta de jogos play-to-earn, a rotatividade do capital se tornou igualmente maior.

Hoje, o token de governança CRA acumula perdas de 98,2%, enquanto o token de utilidade, o Treasure Under Sea (TUS) está mais de 99% abaixo de sua máxima histórica, de acordo com dados do CoinMarketCap.

Gráfico diário CRA/USDT x TUS/USDT. Fonte: Trading View

Pegaxy (PGX) foi outro jogo que conseguiu capturar as atenções do mercado por um breve período de tempo, muito mais pelo seu potencial enquanto investimento especulativo do que pelo jogo em si. Ele chegou a gerar um pico de interesse na virada do ano, que correspondeu a valorização tanto do token de governança – o PGX – quanto do token de utilidade do projeto – o VIX.

Mas hoje, ambos também estão sendo negociados mais de 99% abaixo de suas máximas históricas, de acordo com dados do CoinMarketCap.

Naquele momento, jogadores e investidores migravam constantemente de um projeto a outro em busca das melhores oportunidades de lucro e a vida útil dos jogos foi ficando cada vez mais curta, pois muitas vezes o potencial financeiro estava à frente da jogabilidade. Uma vez que o sistema econômico desse mostra de esgotamento, tornava-se praticamente impossível manter os jogadores, diz Jhoniker Braulio, CEO da First Phoenix Studio:

"Quando o foco é totalmente na parte financeira e o jogo fica em segundo plano, isso realmente vai acontecer, até mesmo se o mercado não estiver em bear market. Quando os ganhos estão à frente da qualidade do jogo, o projeto não é sustentável. Você até consegue se manter por um tempo, mas lembre-se que os players para esses tipos de jogos, querem apenas farmar e sair, o que não promove o crescimento no longo-prazo."

O último fenômeno dos jogos que oferecem recompensas por tarefas cumpridas foi o Stepn (GMT). O aplicativo funciona de maneira semelhante a um jogo play-to-earn, com a diferença de que as recompensas são conquistadas a partir do monitoramento de corridas e caminhadas físicas, monitoradas por GPS a fim de calcular os criptoativos a serem distribuídos aos usuários.

Pouco mais de um mês após o lançamento, o GMT, token de governança do Stepn, alcançou 34.000% de valorização. Hoje, assim como os games que o precederam, amarga perdas similares, ainda que ligeiramente menores: 76,4% em relação à sua máxima histórica, de acordo com dados do CoinMarketCap.

Já o token de utilidade do Stepn, o Green Satoshi Token (GST), está cotado 98,8% abaixo de sua máxima histórica, de acordo com dados do CoinMarketCap.

Gráfico diário GMT/USDT x GST/USDT. Fonte: CoinMarketCap

Profissão jogador

As falhas do modelo play-to-earn acabaram com as ilusões de que é possível fazer dos games em blockchain uma ocupação profissional, embora por um breve momento esta tenha sido uma perspectiva real para jogadores extremamente dedicados.

Apesar disso, novas possibilidades de rentabilização para os jogadores poderão surgir no próximo estágio de evolução dos games, afirma Luiz Octavio, CEO da DUX:

"Primeiramente, a única forma de se manter como um jogador profissional não é ganhando token dos jogos. Vários dos jogadores acabaram se engajando no ecossistema de outras formas para realmente viverem disso: virando produtores de conteúdo ou líderes de comunidade, por exemplo. Jogar profissionalmente para ganhar dinheiro com token de recompensa de games tem se tornado uma tarefa bem árdua e que demanda um risco alto de investimento do jogador ou do seu mantenedor. No futuro, vamos jogar e ganhar, mas não "jogar para ganhar'', mas esse momento ainda está um pouco longe atualmente."

Helô Passos vê como alternativa de profissionalização no ambiente de games em blockchain um modelo semelhante ao dos e-sports:

"Eu acho que dá para fazer disso uma profissão. Acredito que podemos ter um modelo muito parecido com o de e-sports de games tradicionais. Quem realmente faz disso uma profissão, tem que ter dedicação exclusiva para poder jogar competitivamente, pensando em disputar torneios oficiais. Nesse sentido, eu acredito muito nesse viés de profissão e acredito que podemos chegar a um momento em que as pessoas tenham os blockchain games como profissão. Agora, somente esse modelo de jogar para ganhar não funciona mesmo."

Futuro dos blockchain games

A recente queda do mercado não fez com que o interesse pelos games em blockchain diminuísse entre os usuários, mas inevitavelmente terá efeitos sobre o setor. Jogar unicamente para ganhar recompensas financeiras mostrou-se insustentável também porque o aspecto econômico se sobrepôs ao entretenimento. No momento em que a rentabilidade cai, não restam estímulos para seguir jogando.

Focar no desenvolvimento de experiências divertidas capazes de gerar diferentes formas de compensações para os jogadores deve caracterizar a próxima geração de jogos em blockchain, afirma a CEO da SP4CE:

"Sem dúvida, a gente está no fim de um ciclo. E como na indústria blockchain os ciclos são extremamente curtos, um novo ciclo já está sendo gerado. Já é um movimento de mercado deixar o play-to-earn para trás e aderir a um movimento play-and-earn."

Luiz Octavio acredita não apenas que os jogos em blockchain vão passar por uma fase de reinvenção durante o ciclo de baixa do mercado, como vão ser cada vez mais responsáveis por atrair novos usuários para uma nova internet descentralizada. O modelo play-to-earn está ficando para trás, afirma o CEO da DUX:

"Play-to-earn foi um conceito criado num hype de mercado e esse conceito vai se alterar e evoluir, mas acredito realmente que gameficação e tokenização de ativos em games vão ser um dos grandes vetores de atração de pessoas para web 3 no futuro. Não acho que bear market vai matar esse setor. Pelo contrário, acho que vai evoluir mais e ficar bem maduro, com melhor consistência."

Os novos modelos econômicos já estão em gestação. Passos acredita que os NFTs tendem a se tornar um elemento central de conexão entre a experiência do usuário e a geração de valor e renda dentro do ecossistema de jogos em blockchain:

"Acredito que vamos viver um momento que os games estarão muito mais ligados aos NFT’s. Um exemplo é a Wide Life, que recentemente fez uma parceria com a BayZ. A gente tem aí o exemplo da Epic Games, que fechou uma parceria com a Gala Games. Estamos vivendo um momento em que grandes empresas estão entrando no mercado, na minha opinião, muito mais pela questão da propriedade de ativos digitais do que pela questão da distribuição de tokens. Não que a questão de distribuição de tokens vá acabar, mas nesse momento está sendo criado um modelo econômico mais sustentável e as pessoas vão se concentrar muito mais na questão das propriedades "in game", dentro do jogo, como já acontece nos games tradicionais, do que simplesmente na da distribuição dos tokens em si."

Jhoniker Braulio acredita que a reformulação do modelo econômico dos games passa pela adoção de uma única moeda forte em detrimento do sistema dual de tokens, que inevitavelmente resulta na diluição do valor, causando prejuízo aos usuários, desenvolvedores e ao ecossistema como um todo:

"O modelo play-to-earn não tem conserto. Acredito que implementando um único token, com um suprimento limitado, aumentando os casos de uso e tratando o sistema de distribuição do token como secundário, podemos focar em manter usuários ativos jogando nosso jogo, e recompensando-os com tokens de acordo com seus desempenhos. Mas não acreditamos que o foco esteja na distribuição dos tokens. O foco deve estar em oferecer uma experiência atrativa para os nossos usuários. A economia se tornará forte conforme a comunidade de jogadores for aumentando. Um jogo competitivo é o que tornará nosso projeto diferente de todos os outros que existem atualmente. Nossa visão é focada em jogar e ganhar e não jogar para ganhar."

Luiz Octavio conclui o raciocínio prevendo que outras modalidades de jogos devem surgir, incorporando experiências imersivas criadas dentro de metaversos como The Sandbox (SAND), por exemplo. O CEO da DUX também espera que a próxima geração de games em blockchain o caráter especulativo fique em segundo plano, ao contrário do que caracterizou o hype dos jogos play-to-earn no ano passado:

"É interessante lembrar que muito do interesse dos jogos de play to earn do último ciclo não foi interesse de jogadores, mas de investidores que especularam e usavam os games de play to earn menos elaborados como um mecanismo dessa especulação."

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