Resumo da notícia:
Presidente do ONR afirma que a tokenização imobiliária, nos moldes atuais, não garante direito de propriedade e não é a tecnologia mais adequada para o setor.
Insegurança jurídica é um reflexo dos riscos e limitações ONR alerta para riscos e limitações da tokenização no mercado imobiliário.
O sistema registral brasileiro passa por processo de ampla digitalização, incluindo investimentos em IA e blockchain corporativa.
A tokenização não é a solução mais adequada para inovações no mercado imobiliário, uma vez que a posse de tokens não se converte em direito de propriedade no sistema registral brasileiro, afirma Juan Pablo Correa Gossweiler, presidente do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR).
Embora seja útil para o armazenamento distribuído de informações e para a transação de ativos digitais, a tecnologia não atende às exigências jurídicas que estruturam a transferência e a proteção do direito de propriedade no país, argumenta Gossweiler.
Eleito presidente do ONR para o triênio 2024–2026, Gossweiler conduz a modernização do sistema registral brasileiro, com foco na digitalização, padronização e interoperabilidade dos dados que sustentam o registro eletrônico de imóveis. Apesar das iniciativas de tokenização em curso no mercado brasileiro, Gossweiler enfatizou em entrevista exclusiva ao Cointelegraph Brasil que a confusão entre posse de tokens e direitos reais sobre imóveis expõe consumidores a riscos e extrapola o arcabouço jurídico vigente.
Tokenização de imóveis é alvo de insegurança jurídica
Em um cenário de crescente insegurança jurídica — marcada pelas normas estabelecidas pela Resolução 1.551 do Conselho Federal de Corretores de Imóveis (Cofeci), posteriormente suspensa na Justiça após ação movida pelo ONR, e por decisões de corregedorias estaduais que vetaram a vinculação entre matrículas e tokens — o debate sobre tokenização e competências regulatórias ganhou força.
O redirecionamento das prioridades do Banco Central (BC) no Piloto Drex também impactou diretamente o setor. O ONR integrava um dos consórcios do projeto, ao lado do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, e está revendo seus planos após a mudança de rota do BC.
Gossweiler garante que o ONR e seus parceiros no piloto continuarão trabalhando conjuntamente em soluções para conectar o sistema de registro de imóveis às instituições financeiras, trazendo mais agilidade e benefícios aos consumidores.
Inicialmente, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) utilizou o Hyperledger Besu do Drex como infraestrutura. Antes mesmo do desligamento da plataforma da CBDC (moeda digital de banco central), os testes da plataforma haviam sido transferidos para o Hyperledger Fabric, uma blockchain corporativa voltada à segurança, ao desempenho e ao controle de acesso.
Atualmente, o ONR está testando novas Provas de Conceito (PoC) com o objetivo de consolidar uma plataforma robusta e escalável e capaz de sustentar as próximas décadas da infraestrutura digital do registro imobiliário, garantindo transparência, rastreabilidade e interoperabilidade entre sistemas públicos e privados.
A modernização do sistema registral brasileiro envolve investimentos estimados em R$ 400 milhões no triênio 2024–2026, destinados à digitalização dos registros, ao aprimoramento das plataformas eletrônicas e à adoção de ferramentas de inteligência artificial (IA). Segundo o ONR, a plataforma mantida pelos próprios registradores, com acesso gratuito ao usuário final, processa cerca de 230 milhões de solicitações de serviços por ano.
A seguir, Gossweiler explica por que a tokenização é limitada pelo arcabouço jurídico, detalha os avanços do registro eletrônico de imóveis no Brasil e aponta soluções para trazer mais eficiência e liquidez ao mercado imobiliário.
Por que a tokenização não garante propriedade no Brasil
Cointelegraph Brasil: Como o senhor avalia o atual estágio da tokenização imobiliária no Brasil?
Juan Pablo Correa Gossweiler: Muitas vezes é passada a ideia de que, ao comprar um “token” — entre aspas, imobiliário —, as pessoas estão adquirindo uma fração do imóvel. Isso não corresponde à realidade. Não há conexão entre o mundo registral — que é o que a legislação brasileira protege como garantidor do direito de propriedade — e o token gerado, essa representação digital do imóvel que vai transitar, enfim, na rede blockchain e se dissociar do mundo registral.
Qual é o problema essencial dessa dissociação? O proprietário do imóvel na matrícula pode ter o bem penhorado, pode vendê-lo a terceiro, e isso, a princípio, não se refletirá no token. Hoje, a legislação não protege uma — entre aspas — “tokenização imobiliária”. Na prática, ainda não temos uma estrutura jurídica clara sobre o que pode ou não pode ser feito.
Vemos isso com bastante preocupação. Os consumidores muitas vezes adquirem o token como se fosse um direito de propriedade. A nosso juízo, estão sendo enganados: não estão adquirindo propriedade. No máximo, podem estar adquirindo um direito obrigacional, não um direito real.
Por exemplo, quando se compra um imóvel, primeiro existe um contrato; depois, esse contrato é formalizado por escritura pública ou outra forma de transmissão e levado a registro. O token hoje poderia ser imaginado como algo vinculado a esse direito obrigacional.
CT Brasil: Qual é o papel do ONR na estruturação desse mercado e na tentativa de tornar a tokenização imobiliária viável no Brasil?
Gossweiler: Pela Lei 13.465/2017, o ONR tem a obrigação de conglomerar todos os registros de imóveis do país e criar o Registro Eletrônico de Imóveis. É fiscalizado e regulado pelo CNJ. Entendemos que, por força dessa lei, tudo o que diz respeito à propriedade e à tramitação eletrônica de direitos imobiliários deve passar pelo ONR.
E qual é o grande problema dessa distorção entre o mundo registral e o mundo tokenizado? A integração possível viria justamente pela plataforma que o ONR pode oferecer. Como o ONR está integrado aos registros de imóveis do Brasil, existe a possibilidade de criar um sistema que realmente vincule a chamada tokenização imobiliária ao direito de propriedade. Isso permitiria agilidade e tramitação eletrônica. Mas é preciso lembrar: o registro imobiliário é complexo.
Ao contrário de um criptoativo, em que se transfere 50 unidades de A para B, o direito imobiliário exige análise jurídica de documentos de diferentes complexidades. Pode ser uma simples compra e venda; pode envolver usufruto; pode ser um loteamento, uma incorporação, uma penhora, uma indisponibilidade. Então, é um mundo jurídico complexo que, a princípio, em uma rede blockchain teria que ser construído de forma também muito complexa.
Drex, Hyperledger e a nova infraestrutura digital do ONR
CT Brasil: Existe uma ideia de infraestrutura ideal para essa plataforma, algum projeto em andamento?
Gossweiler: Participamos de um grupo de trabalho no âmbito do Drex, do Banco Central. A ideia era integrar blockchain, instituições financeiras e o ONR para dinamizar o mercado de crédito imobiliário. A projeção era reduzir o tempo médio de financiamento — hoje cerca de 60 dias — para algo entre 20 e 22 dias. Avançamos com a tecnologia do BC.
Porém, como divulgado nos últimos dias — inclusive estivemos na reunião em que os participantes foram comunicados —, o Drex, entre aspas, “flopou”. Seguimos então com nosso projeto interno para arquivamento dos registros.
A ideia é substituir o suporte atual — baseado em papel e imagens digitalizadas — por um registro integral na blockchain em formato digital. Avançaríamos na tokenização imobiliária inicialmente no contexto de um sandbox, estudando casos. Em resumo: integrar uma blockchain formatada pelo ONR com os registros de imóveis, para direitos reais, e desenvolver um marketplace para instrumentos particulares, relacionados aos direitos obrigacionais.
Com a suspensão do Drex, continuamos o projeto que vinha sendo desenvolvido com Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e uma cooperativa de crédito. Seguiremos independentemente do BC, talvez não com a adoção de tokens, mas com foco na interoperabilidade entre as redes dessas instituições e o ONR. Tudo isso ainda depende de estudos para compatibilizar tecnologia e direitos.
CT Brasil: Por que o ONR moveu uma ação para suspender a Resolução 1.551 do Cofeci que estabelecia parâmetros para regulamentação do mercado de tokenização imobiliária no Brasil? Para muitos membros do mercado cripto, a resolução foi recebida como um passo importante para finalmente criar regras claras para o setor.
Gossweiler: Respeitamos muito o Cofeci e os corretores. Contudo, não cabe, ao nosso juízo, o Cofeci, regulamentar as plataformas de tokenização; limitar usos; definir habilitação; tratar de agentes de custódia ou garantia; ou dispor sobre o arquivamento e a análise de documentos.
O segundo ponto é que a resolução avança sobre competências que são legislativas. Ao falar em agentes de garantia e custódia que verificariam correspondência entre matrícula e token — tentando dar caráter de propriedade ao token —, a resolução avançou muito além do que seria a competência de um órgão regulador de classe.
O direito de propriedade é intrinsecamente ligado à soberania nacional e à gestão pública. Os cartórios, embora prestem atividade em caráter privado, são fiscalizados pelo Judiciário. Os arquivos são públicos. Por isso, é muito difícil imaginar o direito de propriedade tramitando em redes privadas. Essa é nossa posição.
Sobre aproveitar algo da resolução do Cofeci: talvez aspectos ligados a direitos obrigacionais possam avançar, mas não por meio desse tipo de normativa.
CT Brasil: Uma decisão da Corregedoria de Santa Catarina proibiu os cartórios locais de vincular a matrícula de imóveis a tokens na esteira da decisão contrária à Resolução do Cofeci. É possível, hoje, do ponto de vista jurídico, vincular um token à matrícula de um imóvel específico?
Gossweiler: É possível, por exemplo, comprar um imóvel e pagar com um token ou criptoativo — como forma de pagamento, numa permuta. Então, aquele que era proprietário do imóvel passaria a ser proprietário de um token, e aquele que era proprietário de um ou mais tokens passaria a ser o proprietário do imóvel.
Antes do caso da Corregedoria de Santa Catarina, houve um provimento no Rio Grande do Sul que deixou claro que deveria constar em escritura e registro que o token não se confunde com a propriedade. O problema surgiu quando uma empresa passou a vender tokens como se fossem frações da propriedade, quando o que existia eram créditos de locação.
Isso gera insegurança; consumidores podem estar sendo enganados. Santa Catarina quis evitar essa confusão: se a pessoa quiser comprar imóvel, converta o ativo digital em moeda corrente e negocie em moeda corrente. Depois, o provimento do RS foi revogado pelo mesmo motivo: risco de falsa percepção pelo consumidor.
Os limites jurídicos e tecnológicos do modelo atual de tokenização
CT Brasil: O que impede um imóvel novo de “nascer tokenizado”, com vinculação na matrícula?
Gossweiler: Isso ainda não é possível juridicamente. O que pode ocorrer é que a venda de futuros apartamentos possa ser feita através de contratos particulares. Então, por exemplo, quando eu compro um apartamento, hoje, assino um contrato com a incorporadora. No momento em que estiver pronto, o apartamento vai ser transferido para mim, ou através de um contrato de financiamento ou através de uma escritura pública.
Enquanto isso, eu posso ter um contrato guardado em casa, literalmente um contrato de gaveta. Quando se fala que o imóvel “nasceu tokenizado,” na realidade, o que existe é um contrato de gaveta tokenizado, nada mais do que isso. Ou seja, não tem valor legal para garantir propriedade, efetivamente, ao adquirente, se a incorporadora falir ou qualquer outro imprevisto ocorrer. Os tokens vão voar.
CT Brasil: Algumas das vantagens da tokenização imobiliária seriam a democratização do acesso a um mercado restrito à maioria dos brasileiros e o aumento da liquidez em um mercado tradicionalmente ilíquido. É possível oferecer estes benefícios aos consumidores por meios que não dependam da tokenização?
Gossweiler: Hoje já existem ativos financeiros que oferecem exposição a esse mercado para quem não pode comprar um imóvel inteiro, como fundos imobiliários. Além disso, há mecanismos regulados para dinamizar o mercado. Um exemplo é a iniciativa da Zuvia em parceria com a B3, de tokenização de empreendimentos imobiliários. A empresa constituiu uma SPE (Sociedade de Propósito Específico) para o empreendimento, realizou uma oferta pública e permitiu que investidores adquirissem esses ativos. Tudo isso ocorre sob regulamentação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
CT Brasil: Por fim, podemos imaginar um futuro em que tokens de imóveis sejam negociados como criptoativos, com agilidade e simplicidade?
Gossweiler: A tecnologia blockchain é útil como forma de arquivamento inexpugnável, incorruptível e distribuído. Foi fundamental para moedas digitais. Mas talvez não seja ideal para direitos que exigem análise jurídica minuciosa. Podemos avançar na desburocratização e na tramitação eletrônica? Sim. O ONR já está formatando estruturas tecnológicas para transformar matrículas digitalizadas em matrículas estruturadas em dados. Isso facilita o registro eletrônico.
Recebemos, por exemplo, documentos eletrônicos de instituições financeiras em arquivos digitais. O sistema lê, o registrador valida rapidamente e devolve eletronicamente. Isso traz dinamismo. Estamos avançando também com inteligência artificial para pré-validação de documentos — mas a validação final é responsabilidade do registrador.
Esse parece ser o caminho adequado. Há um certo fetiche em torno da tokenização. Talvez ela funcione muito bem para criptoativos, mas talvez não seja a melhor tecnologia para imóveis. O desafio é transportar o mundo real — com suas regras — integralmente para o digital.
E vale lembrar: hoje, qualquer serviço do Registro de Imóveis pode ser obtido digitalmente pela plataforma RI Digital — certidões, visualização de matrícula, protocolos de escritura, contratos, mandados judiciais, requisições de órgãos públicos. O cidadão não precisa mais ir ao cartório e o custo é zero. É necessário apenas um nível básico de familiaridade com a tecnologia.