Sob investigação da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a Tools for Humanity, empresa responsável pelo ecossistema World, projeto de identidade digital e prova de humanidade que inclui a WorldID e o criptoativo Worldcoin (WLD), pode entrar na mira do Ministério Público Federal (MPF).

O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) solicitou que o MPF “adote providências urgentes para fazer cessar a coleta de dados personalíssimos de cidadãos brasileiros por meio de escaneamento de íris em troca de remuneração financeira pela empresa norte americana Tools for Humanity – TfH", noticiou a Folha de São Paulo, na quinta-feira, 23 de janeiro.

A Tools for Humanity inaugurou oficialmente suas operações no Brasil em 13 de novembro de 2024, com a abertura de 10 pontos de coleta de dados biométricos de usuários dispostos a ter suas íris escaneadas em troca de 53 unidades de WLD – aproximadamente US$ 120 (R$ 710) na cotação de mercado atual, de acordo com dados da CoinGecko.

Atualmente, há mais de 40 pontos de coleta, segundo a Tools for Humanity. Mais de 1 milhão de brasileiros já teriam baixado o World App, aplicativo que inclui uma carteira de criptoativos para armazenamento da WLD e identidade digital dos usuários. Do total, 400 mil teriam se submetido ao processo de verificação biométrica.

No mundo todo, o World já conta com mais de 10 milhões de humanos verificados, enquanto o World App possui mais de 16 milhões de usuários ativos, conforme noticiado recentemente pelo Cointelegraph Brasil.

Tendo Sam Altman, cofundador da OpenAI, como um de seus idealizadores, o World tem a ambição de criar uma identidade digital capaz de diferenciar humanos de entidades digitais em um mundo cada vez mais mediado por interações virtuais e uma rede financeira para distribuição de renda básica universal (UBI) – uma espécie de “bolsa família” para cidadãos diretamente afetados pela automação do mercado de trabalho.

O escaneamento de íris no qual se baseia o sistema de identidade digital do World utiliza um dispositivo eletrônico criado especialmente para tal fim – os Orbs. O dispositivo captura imagens de alta resolução dos olhos e das íris dos usuários. Recursos criptográficos como prova de conhecimento zero (ZK-Proof) e Computação Multipartidária Anônima (AMPC) permitem que os cidadãos provem que são humanos sem a necessidade de vincular as imagens capturadas a dados pessoais ou de identidade.

Especialistas avaliam legalidade do World

Desde que foi anunciado e entrou em operação em julho de 2023, o World tem sido alvo de críticas e desconfiança de ativistas de direitos humanos e digitais devido à suposta falta de transparência sobre o manejo e o uso dos dados biométricos dos usuários. Alguns países chegaram a proibir as operações do World em suas fronteiras ou abriram investigações sobre as práticas da empresa.

Em entrevista ao ITForum, Rodrigo Tozzi, chefe de operações da Tools for Humanity no Brasil argumentou que em um futuro próximo a capacidade de “diferenciar humanos de robôs será algo fundamental para que possamos aproveitar ao máximo a nova era da inteligência artificial.” E é isso que o World se propõe a fazer com seu sistema de identidade digital.

Tozzi também defende que as políticas de privacidade de dados precisarão ser revistas na era da inteligência artificial (IA):

“No futuro próximo, eu e você poderemos ter dúvidas se estamos falando com pessoas reais ou com avatares. Por isso, a transparência na internet será essencial para que possamos tirar proveito de tudo isso. A forma como compartilhamos dados deve ser reconsiderada, porque, com apenas um pequeno trecho de vídeo nosso, uma inteligência artificial consegue se passar por nós, imitar nossos trejeitos, voz, imagem e assim por diante. Dessa forma, a IA vai trazer muitos benefícios para a humanidade –  não tenho dúvidas disso – , mas também trará novos desafios. Vamos precisar de novas ferramentas para aproveitar ao máximo essa era.”

Ronaldo Lemos, advogado especialista em direito digital, concorda que é preciso renovar os processos de identificação de seres humanos diante dos avanços da IA:

Em entrevista à Forbes Brasil, Lemos afirmou que as ferramentas de IA tornarão cada vez mais fácil simular a identidade de pessoas reais em ambientes virtuais por meio da manipulação de imagens e voz.

Assim, a busca da World por um modelo de identidade digital que diferencie os seres humanos das máquinas é legítima:

“A premissa da empresa é que todas as formas de identificação que eram utilizadas até agora vão se enfraquecer por causa da IA. Então, a empresa adotou a identificação por meio da íris, que é muito mais difícil de ser fraudada com inteligência artificial.”

Lemos acrescentou também que, em princípio, o serviço prestado pela Tools for Humanity não é ilegal, de acordo com as leis brasileiras. A identificação biométrica é algo que já está presente no cotidiano dos cidadãos tanto em ambientes digitais como para ter acesso a prédios comerciais, por exemplo.  No entanto, Lemos advertiu:

“A questão é saber se a legislação brasileira está sendo seguida, o que inclui a Lei de Proteção de Dados e o Código de Defesa do Consumidor, especialmente depois que os dados são coletados.”

Segundo reportagem da Folha de São Paulo, o sistema utilizado pela Tools for Humanity viola o direito à revogação do consentimento previsto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Os sistemas de prova de conhecimento zero e computação multipartidária anônima criptografam os dados pessoais dos usuários de ponta-a-ponta e criam um código alfa-numérico. Essa identificação única pertence ao usuário, que pode apagá-la ao desativar o World App.

Em um texto publicado no portal Consultor Jurídico, os especialistas em sistemas de informação Agostinho Gomes Cascardo Junior, Franco Perazzoni e Rafael Ferreira Filippin afirmam que “a falta de informações detalhadas sobre o armazenamento, uso, e eventual compartilhamento desses dados coloca em dúvida a conformidade do projeto com a LGPD.”

Marcos Barreto, professor da Escola Politécnica da USP e da Fundação Vanzolini, questiona a segurança dos dados dos usuários do World, pois não há garantias de inviolabilidade de dados criptografados. "A História mostra que o avanço dos computadores permite superar os desafios criados pela criptografia", afirmou à Folha de São Paulo.

A Tools for Humanity argumenta que utiliza um sistema de código aberto, submetido a diversas auditorias, e em permanente evolução. Além disso, explica que as imagens coletadas ficam armazenadas apenas no aplicativo dos usuários, associada a uma chave criptográfica única.

No entanto, os dados podem ser diretamente acessados pela Tools for Humanity, desde que o aplicativo esteja ativo e os usuários tenham concedido permissão para edição de pastas e arquivos, segundo Marcos Simplício, professor da Escola Politécnica da USP.

Modelo de Negócios do World

O uso comercial dos dados dos usuários é outra preocupação levantada por diversos especialistas. Lemos afirma que a Tools for Humanity utiliza esse modelo de compensação de usuários com criptoativos por saber que “em breve ser capaz de provar a identidade de alguém online vai valer ouro.”

Tozzi admite que o modelo de negócios da Tools for Humanity ainda “não está totalmente claro", mas aponta alguns possíveis casos de uso:

“A Tools for Humanity tem uma aplicação chamada World ID, que permite ao usuário provar que é um humano. A resposta mais natural seria vender integrações por API. Qualquer empresa, instituição ou pessoa que queira garantir que seu serviço ou processo na internet seja realizado exclusivamente por humanos encontrará na World ID a solução para isso. Para algumas redes sociais, isso pode ser extremamente relevante. No caso de bancos, por exemplo, determinadas transações bancárias precisam ser realizadas exclusivamente por humanos. São inúmeros casos de uso possíveis apenas com a integração da  World ID.”

O World App também possui uma loja de mini apps vinculados ao ecossistema World, que pode gerar receitas para o projeto. Além disso, segundo Tozzi, a tendência é que surjam novos casos de uso à medida que a IA evolui e a distinção entre humanos e máquinas se torna cada vez mais sutil.

Tozzi garante, no entanto, que os dados biométricos dos usuários do World jamais serão comercializados:

“O único dado que existe é o código de verificação, que está fracionado na blockchain. Não há nenhum dado para ser vendido. Não há nenhuma transação comercial envolvida. Nenhum colaborador do Worldcoin fica com qualquer informação. Então, se não há nada armazenado, não há nada para ser comprado ou vendido.”

Em outubro do ano passado, o World anunciou o lançamento de sua própria blockchain. A World Chain privilegiará os usuários humanos verificados em detrimento de bots, dando-lhes acesso prioritário e taxas de gás gratuitas, conforme noticiado pelo Cointelegraph Brasil.