O anúncio divulgado pelo Banco Central (BC) na última quinta-feira de que o Drex vai avançar abrindo mão da tecnologia blockchain como base infraestrutural, devido às complexidades enfrentadas pelos consórcios para solucionar limitações de privacidade e interoperabilidade do sistema durante a fase 2 do piloto, evidencia escolhas equivocadas da autoridade monetária no desenvolvimento do projeto da CBDC brasileira.

Na prática, a versão inicial do Drex a ser lançada em 2026 será centralizada e abrirá mão de duas premissas fundamentais do universo cripto: a tokenização de ativos e o registro distribuído (DLT).

“O Drex, hoje, não representa o futuro do dinheiro — mas sim a preservação do passado", afirma o engenheiro Ricardo Santos, CTO da Mansa, um provedor de liquidez para soluções de pagamentos transfronteiriços e crédito para o setor produtivo financiado pela Tether, empresa líder no setor de stablecoins.

Segundo o engenheiro, o recuo do BC caracteriza “uma admissão de que a arquitetura permissionada e isolada do Drex não consegue, hoje, entregar privacidade, interoperabilidade e programabilidade de forma segura.”

Com experiência prévia no mercado tradicional, com passagem pelo BTG Pactual, Santos participou do Piloto Drex liderando o desenvolvimento da Rayls, blockchain da Parfin utilizada nos testes de privacidade da moeda digital de banco central brasileira.

Em março de 2025, o engenheiro deixou a empresa e juntou-se à Mansa, com a motivação de solucionar "problemas reais" de liquidez e acesso a capital em escala global:

“Vi de perto os limites dos modelos atuais — tanto nas instituições tradicionais quanto em projetos públicos como o Drex. Todos estão olhando para tokenização sob a ótica da infraestrutura, mas poucos estão resolvendo o problema real: como conectar capital a quem precisa dele, com velocidade, segurança e escala global.”

Santos argumenta que o grande problema do Drex não é exclusivamente tecnológico, mas sim sua irrelevância no cenário geopolítico e financeiro global. Ele aponta que, apesar de o Brasil ter um histórico de inovação com o Pix e o Open Finance, o Drex está se tornando uma "falha lindamente projetada" porque ninguém fora do país está prestando atenção ou se engajando com o projeto.

Essa falta de interesse é evidenciada pela ausência de integração com qualquer blockchain pública relevante, protocolos de finanças descentralizadas (DeFi) como Circle e Aave (AAVE). Enquanto isso, gigantes da tecnologia, como a Microsoft, se afastaram do projeto.

Segundo Santos, isso ocorre porque a arquitetura do Drex foi projetada como um "silo" ou uma "fortaleza digital sem rotas comerciais." Por ser uma rede permissionada, controlada pelo BC e sem pontes de conexão com blockchains públicas como Ethereum (ETH) e Solana (SOL), ela é incapaz de atrair desenvolvedores, liquidez ou escalar projetos de tokenização.

O eventual sucesso do Drex, apesar dos percalços, corre o risco de “consolidar um modelo isolacionista, centralizador e ineficiente, que bloqueia a integração do Brasil ao sistema financeiro global baseado em liquidez aberta e infraestrutura programável", afirma o engenheiro.

Confira abaixo a entrevista completa concedida ao Cointelegraph Brasil.

Isolamento e obstáculos técnicos do Drex

Cointelegraph Brasil: Você deixou a Parfin, que participa do Piloto Drex, para fundar a Mansa. Por quê?

Ricardo Santos: Deixei a Parfin por um motivo simples: senti que o mercado precisava de algo que ninguém estava construindo. Vi de perto os limites dos modelos atuais — tanto nas instituições tradicionais quanto nos projetos públicos como o Drex. Todos estão olhando para tokenização sob a ótica da infraestrutura, mas poucos estão resolvendo o problema real: como conectar capital a quem precisa dele, com velocidade, segurança e escala global.

A Mansa nasce para isso. A proposta é simples: usar DeFi como infraestrutura para resolver problemas reais de liquidez, especialmente em pagamentos internacionais e crédito para empresas em mercados emergentes.

CT Brasil: Você afirma que o Drex está sendo construído como uma “intranet” em um mundo que opera com a “internet” aberta das blockchains. Quais as principais consequências dessa escolha?

Ricardo Santos: Antes de tudo, é importante reconhecer o trabalho técnico sério que está sendo conduzido no piloto do Drex. Estamos, sim, diante de uma fase de experimentação, e justamente por isso é essencial termos um debate aberto e honesto sobre os limites da arquitetura escolhida.

O Drex está sendo construído sobre uma rede permissionada e fechada, sem exposição à internet pública e sem interoperabilidade com redes como Ethereum, Solana ou plataformas corporativas como JPM Coin. Na prática, isso o transforma em uma “intranet financeira estatal”, enquanto o restante do mundo opera com infraestrutura aberta, interoperável e programável.

Essa escolha traz três consequências principais:

1. Inovação restrita – Desenvolvedores externos não conseguem experimentar ou compor soluções sobre o Drex. Isso elimina a possibilidade de composabilidade — o principal motor de inovação no ecossistema Web3. Como ouvi do sócio de um banco: “Temos cavalos excepcionais... mas esse jogo precisa de golfinhos.”

2. Privacidade mal resolvida – Numa rede onde cada participante roda um nó e enxerga todas as transações, a visibilidade total se torna um problema. Para evitar exposição entre participantes, é preciso aplicar camadas artificiais de privacidade — o que compromete a programabilidade. Cria-se uma espiral negativa: mais privacidade, menos funcionalidade, mais rigidez.

3. Irrelevância sistêmica – Mesmo que se diga que “protocolos DeFi poderão rodar sobre o Drex”, a realidade é que ninguém vai integrar com uma rede sem liquidez, sem interoperabilidade, sem privacidade moderna.

CT Brasil: O Brasil não participa de projetos globais como mBridge ou Jura. Isso é limitação técnica ou escolha política?

Ricardo Santos: É uma escolha do BC, que decidiu resolver problemas locais, mas o que me chama atenção é que o grande incentivo da tokenização está na distribuição, não na originação. Qual é o benefício e retorno financeiro de melhorar a infraestrutura de Open Market e mercado interbancário? Obviamente existem benefícios, mas o retorno financeiro é incompatível com o custo.

O Drex foi concebido como um sistema fechado e doméstico. Ao não participar de iniciativas como a mBridge, o Brasil abdica de influência nos padrões financeiros globais e se posiciona como consumidor de tecnologia, não como protagonista.

CT Brasil: Por que os tokens de depósito fragmentam a moeda? O “Drex do Itaú” é diferente do “Drex do Banco Inter”?

Ricardo Santos: Sim — e esse é exatamente o problema. Cada banco emite seu próprio token de depósito, que representa um passivo daquela instituição. Isso significa que o token do Itaú (rating AA-) não tem o mesmo valor percebido que o token do Banco Inter (rating BBB), por exemplo.

Essa estrutura quebra o princípio de fungibilidade da moeda. Em vez de termos um “real digital” único, temos múltiplas versões com riscos, liquidez e spreads diferentes — e isso cria armadilhas de liquidez, aumenta a complexidade operacional e reduz a eficiência do sistema como um todo.

E o problema é mais grave quando analisamos o lastro desses tokens. Ao contrário das stablecoins reguladas pelo Genius Act, que exigem reserva 1:1 em caixa ou títulos públicos altamente líquidos, os tokens de depósito são, na prática, lastreados em carteiras de crédito — ou seja, em ativos ilíquidos e arriscados.

Um exemplo concreto: Em 2018, o Banco Pottencial, que operava como parceiro regulado da Neon Pagamentos, foi liquidado pelo Banco Central por irregularidades. O Neon teve que correr para trocar de infraestrutura — firmando parceria com o Banco Votorantim. Agora imagine esse cenário replicado no Drex: todos os tokens do “Banco Pottencial” perderiam imediatamente liquidez e valor. É esse o risco que o modelo de tokenização por instituição importa para dentro da camada digital do real.

Drex como Evolução do Pix — Monopólio, Controle e Centralização

CT Brasil: O Pix é reconhecido internacionalmente como um caso de sucesso e inovação financeira do Brasil. Você contesta essa narrativa, afirmando que o Pix não é um projeto original, mas sim inspirado em sistemas como o indiano, e que grande parte do seu sucesso deve ser atribuído à intervenção estatal. Quais são suas restrições ao sistema e quais as vantagens e desvantagens do Pix em comparação com soluções privadas?

Ricardo Santos: Eu gosto do Pix, tecnicamente. É uma solução eficiente, simples de usar e que trouxe benefícios reais à população. Minhas críticas não são à tecnologia em si, mas ao modelo de governança e ao viés estrutural que vem da herança do SPB — um sistema profundamente centralizado e operado pelo próprio Estado.

O Pix foi criado sob um mandato regulatório obrigatório: todos os bancos foram forçados a participar desde o início, sob risco de sanções. Houve subvenção estatal via infraestrutura pública gratuita, e o Banco Central atuou ativamente para bloquear alternativas concorrentes, como o WhatsApp Pay. Depois disso, o discurso oficial passou a ser: “Viu como o Pix é um sucesso?”. Isso é o mesmo playbook de qualquer monopólio estatal — eliminar a competição, forçar a adoção e depois reivindicar o mérito.

O caso do WhatsApp Pay ilustra bem essa tensão. Em junho de 2020, a Meta anunciou o lançamento do serviço de pagamentos via WhatsApp no Brasil, usando cartões cadastrados pelos usuários. Dias depois, Banco Central e CADE suspenderam o serviço cautelarmente, alegando que ele operava “à margem do sistema financeiro legal”. O receio explícito era o surgimento de um “sistema paralelo”, fora do alcance do Estado. Somente após adequações e parcerias com instituições do SPB é que o serviço foi autorizado no ano seguinte.

É natural que um modelo imposto por regulação obrigatória atinja adoção em massa. Mas isso não comprova mérito tecnológico nem superioridade de mercado — apenas o efeito de um sistema centralizado com poder normativo. O MB Way de Portugal, por exemplo, foi lançado em 2013 — sete anos antes do Pix — e oferece basicamente as mesmas funcionalidades: pagamentos instantâneos, QR Code, integração com bancos. O mesmo vale para o UPI na Índia. A diferença está na governança: lá, a participação é voluntária e aberta. Aqui, foi compulsória e estatal.

Centralizar dados, infraestrutura e contas em uma única plataforma controlada pelo Estado amplifica riscos sistêmicos — e deveria servir de alerta para o Drex, que é ainda mais ambicioso em termos de controle.

A China, curiosamente, adotou um caminho oposto. Mesmo com um governo centralizador, o Banco Popular da China permitiu que empresas privadas como Alibaba e Tencent liderassem a inovação com Alipay e WeChat Pay. A disrupção veio primeiro das fintechs, e só depois o Estado entrou com regulação e sua própria CBDC. Isso mostra que mesmo regimes autoritários podem apostar primeiro na concorrência e só depois em modelos estatais.

Por fim, deixo uma reflexão: meritocracia e competição geram inovação em alta velocidade. Num mercado gigantesco, criativo e competitivo como o brasileiro, será mesmo que não teríamos soluções ainda melhores do que o Pix se houvesse liberdade real de mercado?

CT Brasil: O Pix registrou recentemente o maior vazamento de dados da história do país e, pouco antes, instituições financeiras tiveram suas contas de reserva no BC invadidas em um hack. Essas falhas de segurança servem como um alerta para os riscos do Drex? Quais vulnerabilidades se amplificam no modelo da CBDC?

Ricardo Santos: O Pix esteve no no centro de dois incidentes graves: o maior vazamento de dados do país e o maior crime cibernético do sistema financeiro nacional, com mais de R$ 1 bilhão desviado de contas de reserva no BC. Esses episódios revelam fragilidades estruturais na governança e segurança do sistema de pagamentos centralizado, especialmente quando participantes e terceiros operam com permissões amplas e sem camadas técnicas suficientes de isolamento.

No caso do Drex, essas vulnerabilidades não apenas persistem, mas se amplificam de maneira sistêmica. O Drex não é apenas um sistema de mensagens como o Pix — ele representa a própria moeda, tokenizada e programável. Isso significa que qualquer falha de lógica, qualquer bug em contratos inteligentes ou qualquer integração insegura pode levar à movimentação irreversível de valor. Ao contrário do sistema bancário tradicional, onde erros operacionais podem ser corrigidos por meio de ajustes, estornos ou arquivos de reconciliação entre bancos e Banco Central, um sistema em blockchain não permite alterar o passado. O que foi executado na cadeia é definitivo. Isso elimina o colchão institucional que hoje existe no SPB, onde as partes podem acordar correções manuais ou contábeis diante de inconsistências.

Além disso, o Drex introduz lógica automatizada nos fluxos financeiros — tokens que carregam regras de uso embutidas, como prazos, condições ou destinos forçados. Isso reduz a margem de intervenção humana em caso de falhas, aumentando o risco de efeitos em cascata. E, como a emissão, liquidação e auditoria do Drex estarão totalmente concentradas no Banco Central, qualquer falha técnica ou de governança não poderá ser diluída entre múltiplos agentes privados, como ocorre no sistema atual. Nesse contexto, o risco deixa de ser apenas tecnológico e passa a ser também político e institucional.

O Drex, ao incorporar a lógica imutável da blockchain com a centralização soberana do Estado, precisará enfrentar um paradoxo: como garantir segurança, reversibilidade operacional e resiliência, em um sistema onde não se pode voltar atrás? Essa é a pergunta central que o projeto ainda não respondeu de forma satisfatória.

CT Brasil: O BC já fez um comunicado oficial rejeitando qualquer possibilidade de que o Drex possa ser usado como instrumento de controle e vigilância. Quais são as funcionalidades mais preocupantes do “dinheiro programável" para controle social e financeiro da população?

Ricardo Santos: A primeira pergunta que precisamos fazer é: os poderes da República têm sido respeitados no Brasil? Temos visto decisões judiciais tomadas por instâncias que extrapolam suas atribuições, com impactos diretos sobre a liberdade de expressão, bloqueios de contas bancárias, remoção de conteúdo, e até censura prévia — tudo isso sem o devido processo legal.

Agora imagine esse mesmo ambiente institucional operando sobre uma moeda programável, controlada diretamente por uma infraestrutura estatal, com capacidade técnica de definir quem pode gastar, onde, quando e como. Esse é o risco.

O dinheiro programável permite, por design, a criação de regras automatizadas para restringir transações: congelamento de fundos, bloqueio de determinados tipos de gasto, vencimentos forçados, expiração de saldo, segmentação geográfica, entre outros. Essas funcionalidades podem ser legítimas se bem reguladas — por exemplo, em programas sociais com finalidades específicas. Mas, em mãos erradas ou sob influência política, viram instrumentos de repressão financeira.

A própria existência dessa possibilidade muda a natureza do dinheiro. Ele deixa de ser um ativo neutro e universal, e passa a ser um vetor de política pública ou judicial, controlável em tempo real.

Não se trata de teoria conspiratória. O uso crescente do Pix para bloqueios judiciais já mostrou que, quando o Estado tem acesso direto à infraestrutura de pagamento, a tentação de usar isso como ferramenta de coerção é real. O Drex amplia isso em magnitude e velocidade.

O Banco Central pode dizer que não pretende usar o Drex para controle — mas isso não significa que ele não possa ser usado dessa forma. A arquitetura técnica permite. E no Brasil, onde a separação de poderes e os freios institucionais vêm sendo testados com frequência, essa possibilidade não pode ser ignorada.

Modelos alternativos e o custo de oportunidade

CT Brasil: Você defende que a melhor estratégia seria fomentar stablecoins de real lastreadas em títulos do Tesouro. Como isso funcionaria na prática? Quem emitiria essas stablecoins e como elas criariam a demanda global pelo real que o Drex não é capaz de gerar?

Ricardo Santos: Stablecoins de real lastreadas em títulos públicos seriam uma forma de trazer o real para o ambiente digital global sem abrir mão da segurança, da liquidez e da política monetária do país. A ideia é simples: um emissor regulado emite tokens de BRL 100% lastreados em LFTs, Tesouro Selic ou NTN-Bs. Esses tokens circulam em redes públicas , mas o lastro permanece no Tesouro Nacional — ou seja, dentro do controle fiscal do Brasil.

Esse modelo tem vantagens estruturais sobre o Drex:

1. Liquidez e confiança global: Um token lastreado em Tesouro Nacional pode se tornar uma referência de "digital real" confiável, como o USDC é para o dólar. Isso facilita o uso em comércio exterior, stablecoin FX, pagamentos cross-border, investimentos e tesouraria de empresas.

2. Atração de capital estrangeiro: Hoje, o investidor internacional que quer ganhar juros sobre o real digital não tem uma porta de entrada regulada. Com uma stablecoin lastreada em títulos públicos, ele pode comprar tokens, que são investidos automaticamente em LFTs. Isso cria demanda pelo real e injeta recursos diretamente na dívida pública brasileira, reduzindo a necessidade de financiamento interno.

3. Benefício fiscal e financeiro para o Estado: Ao vincular stablecoins a títulos do Tesouro, o governo brasileiro pode captar recursos voluntários e de baixo custo no mercado global, aumentando o funding em real sem depender exclusivamente dos bancos.

4. Composabilidade com DeFi e fintechs: Essa stablecoin poderia ser usada como colateral, meio de pagamento, instrumento de crédito ou unidade de conta em protocolos abertos. Isso abre espaço para inovação descentralizada com segurança institucional.

5. Simplicidade jurídica — É mais fácil regular emissores privados com lastro público do que tentar reinventar o sistema financeiro com uma infraestrutura estatal fechada.

Em resumo, uma stablecoin de BRL lastreada em Tesouro é como se fosse o Tesouro Direto 3.0: acessível, programável, integrada globalmente — mas com a robustez fiscal do Brasil por trás. Ao contrário do Drex, ela não exige que o Estado se torne operador de infraestrutura, apenas que estabeleça regras claras para emissores, custódia, auditoria e interoperabilidade.

Essa abordagem é mais alinhada com os movimentos globais pós-Genius Act, onde a prioridade é garantir transparência, liquidez e segurança jurídica para stablecoins.

CT Brasil: Você fala em "dezenas de bilhões de dólares" em oportunidades perdidas com a ausência de uma infraestrutura de tokenização aberta e globalmente conectada. Por quê?

Ricardo Santos: Sim. Enquanto o Drex opera em circuito fechado, o mundo está se integrando via stablecoins e tokenização de ativos em redes abertas. Os maiores gestores do mundo — como BlackRock, Franklin Templeton e WisdomTree — já estão criando produtos tokenizados on-chain e testando modelos de liquidez programável, desde títulos do Tesouro americano até ETFs digitais.

Agora imagine o seguinte: e se o Brasil oferecesse stablecoins de real lastreadas em títulos do Tesouro Nacional, acessíveis via redes públicas e com compliance local? O que impede que um fundo global compre essas stablecoins e ganhe 5–7% reais ao ano, com risco soberano relativamente conhecido? Por que alguém se exporia ao risco do real?

Porque o prêmio compensa. O Brasil tem uma das maiores taxas reais de juros do mundo. Enquanto T-Bills americanos rendem perto de 0% real, o Tesouro brasileiro pode entregar 5% ou mais — o que atrai naturalmente investidores globais dispostos a assumir exposição cambial.

Além disso, há uma tese estrutural de commodities. O real se beneficia de ciclos globais de alta do preço de soja, milho, minério e petróleo. Para fundos que buscam diversificação e beta em mercados emergentes, o real pode ser uma proxy de crescimento — como o dólar australiano ou canadense.

No agro, por exemplo, já temos cooperativas, securitizadoras e fundos com estrutura para emitir tokens representando recebíveis ou dívida agrícola. Com uma infraestrutura tokenizada interoperável, isso poderia virar um mercado líquido, global, em que o investidor de Singapura compra yield rural brasileiro sem intermediários — tudo em blockchain.

É disso que estamos falando quando dizemos que o Brasil está perdendo “dezenas de bilhões de dólares”: oportunidades de atrair liquidez internacional que hoje escorrem para o exterior ou ficam represadas por falta de infraestrutura e clareza regulatória.

CT Brasil: Enquanto o Drex se isola, o sistema financeiro tradicional se integra cada vez mais à criptoeconomia. Na sua visão, a integração do Brasil a esse sistema ocorrerá apesar do Drex, com as empresas brasileiras adotando USDC e outras stablecoins por conta própria, tornando a CBDC local irrelevante para o comércio internacional?

Ricardo Santos: Sim. É o que já está acontecendo. Empresas brasileiras que operam com comércio exterior, criptoativos ou serviços financeiros digitais já usam USDC, USDT e até stablecoins privadas lastreadas em reais para resolver pagamentos, liquidações e custódia — muitas vezes sem depender de infraestrutura nacional. Elas não estão esperando pelo Drex.

A lógica é simples: o mundo não vai esperar o Brasil. O capital global migra para onde há interoperabilidade, liquidez e infraestrutura padronizada. Ethereum e outras redes públicas já são hubs financeiros globais — com DeFi, stablecoins, ativos tokenizados e protocolos de crédito funcionando 24/7, com liquidez programável. Se o Brasil não se integrar a esse sistema, ele será simplesmente contornado.

A consequência é clara: o Drex pode se tornar irrelevante para o comércio internacional, mesmo antes de nascer de fato. Ele será útil apenas em nichos controlados — talvez liquidações bancárias locais ou emissões públicas tokenizadas — mas não será o padrão para pagamentos globais, financiamento internacional ou liquidez cross-border.

As stablecoins e a infraestrutura de tokenização abertas vão avançar com ou sem o Drex. A escolha que o Brasil tem que fazer é se quer liderar ou apenas observar — de fora.

Mudança de rota é necessária

CT Brasil: Se o modelo Drex é tecnicamente inferior e estrategicamente isolacionista, por que o Banco Central, grandes instituições financeiras investem nele?

Ricardo Santos: A resposta está menos na tecnologia e mais na dinâmica de poder institucional e político. O Drex virou um projeto de prestígio. Há carreiras, bônus, consultorias e contratos sendo criados em torno de um sistema que ainda nem existe de fato. Criamos top voices no LinkedIn, promovemos eventos, construímos sistemas e ferramentas para resolver “problemas do Drex” — antes mesmo de sabermos se esse modelo será adotado pelo mercado.

Essa indústria de narrativas cria uma percepção de inevitabilidade. Quando o próprio regulador cria a tecnologia, regula sua aplicação e promove sua adoção, há um conflito de interesses evidente. Como criticar abertamente o Drex sem parecer “contra o futuro”? Esse receio trava o debate honesto. Muitos líderes do setor, mesmo percebendo os riscos, se calam para evitar retaliações ou ruídos com o regulador.

Além disso, há três razões centrais — e nenhuma delas é puramente técnica.

1. Preferência por Controle sobre Eficiência: Stablecoins privadas, especialmente aquelas lastreadas em Tesouro, implicam uma redução direta no controle do Banco Central. Elas operam em redes públicas, com lógica programável descentralizada e interoperável. Já uma CBDC como o Drex oferece o sonho do monitoramento total: cada transação visível, rastreável e, em última instância, controlável.

O BC age mais como regulador do que como estrategista monetário. Um estrategista pensaria em como o real pode ganhar tração global, atrair liquidez e facilitar o comércio internacional. Um regulador pensa em supervisão, risco e compliance. O Drex é reflexo direto dessa mentalidade: prioriza o controle estatal em vez da eficiência econômica.

2. Captura por Incumbentes Bancários: No modelo do Drex, os bancos tradicionais mantêm o papel de emissores de tokens. Isso preserva seu poder de intermediação e protege suas margens. Já uma stablecoin aberta e pública, emitida fora do oligopólio bancário, representaria concorrência real e acesso direto a ativos em blockchain.

Por isso, o lobby bancário atua (às vezes silenciosamente, às vezes nem tanto) para garantir que qualquer inovação ocorra sob seus próprios trilhos. Isso trava o surgimento de modelos mais abertos, mais líquidos e, principalmente, mais inclusivos.

3. Síndrome do “Not Invented Here”: Stablecoins representam uma tecnologia criada fora dos muros institucionais — nas comunidades cripto, com código aberto, interoperabilidade global e arquitetura descentralizada. Já o Drex foi construído “dentro de casa” em uma blockchain permissionada, com infraestrutura própria e logicamente isolada. O Drex não foi desenhado para alavancar o real como moeda global. Ele foi desenhado para proteger o status quo.

Em resumo, o maior risco do Drex não é ele falhar. É ele “funcionar” — e ao funcionar, consolidar um modelo isolacionista, centralizador e ineficiente. Um modelo que bloqueia a integração do Brasil ao sistema financeiro global baseado em liquidez aberta e infraestrutura programável. O Drex, hoje, não representa o futuro do dinheiro — mas sim a preservação do passado.

CT Brasil: Como alguém diretamente envolvido no Piloto Drex, como você observa as propostas do Banco Central e da CVM para regulação do mercado de stablecoins e tokenização de ativos reais? Elas abrem caminho para uma eventual mudança de rota no projeto do Drex caso o projeto se mostre técnica e economicamente inviável?

Ricardo Santos: As propostas atuais do Banco Central e da CVM sobre stablecoins e tokenização mostram avanços importantes, mas ainda revelam uma dissonância estrutural entre o que se propõe regular e o que se tenta construir com o Drex.

Como alguém que participou diretamente do Piloto Drex, posso dizer com clareza: existe um descompasso técnico e filosófico entre o mundo cripto — onde a tokenização já acontece, em grande escala, com liquidez real e interoperabilidade global — e o modelo fechado, permissionado e ‘bancocêntrico’ que o Drex propõe.

A CVM, por exemplo, tem feito movimentos mais pragmáticos ao reconhecer o potencial de ativos tokenizados, inclusive sinalizando abertura para que emissões ocorram em redes públicas, desde que com garantias jurídicas. Isso, por si só, já contraria a premissa central do Drex de que tudo deveria rodar dentro de sua rede permissionada. O Banco Central, por sua vez, começa a discutir stablecoins, mas ainda com uma visão limitada à supervisão de emissores nacionais e sem clareza sobre como se conectar a essa nova infraestrutura global que já está consolidada.

Esses movimentos regulatórios são positivos, mas ainda tímidos. O risco é que, mesmo que se reconheça a inviabilidade técnica e econômica do Drex no médio prazo, o projeto continue avançando por inércia política e institucional — algo comum em estruturas públicas. O mais sensato seria usar essa regulação emergente como ponto de inflexão: assumir que o Drex, tal como está concebido, não é o caminho ideal, e passar a apoiar modelos híbridos ou abertamente integrados às redes públicas, com supervisão regulatória sobre emissores, e não sobre a infraestrutura em si.

Há tempo para corrigir a rota. Mas é preciso coragem institucional e disposição para abandonar uma narrativa que já mobilizou carreiras, orçamentos e expectativas.