Distante da disputa travada entre os Estados Unidos e a China pela liderança do mercado de semicondutores, o Brasil se aproveita de sua neutralidade política, incentivos fiscais do governo e de parcerias entre empresas estrangeiras e universidades para posicionar-se na cadeia global de inovações de um setor que deve atingir US$ 1,5 trilhão até o final desta década.
Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, está se tornando um polo de desenvolvimento de chips no Brasil, graças a uma iniciativa de Júlio Leão, doutorado pelo IMEC (Centro Interuniversitário de Microeletrônica), o principal instituto de pesquisa de semicondutores do mundo, na Bélgica, e ex-funcionário do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec).
Em 2021, a inclusão da entidade no Plano Nacional de Desestatização do governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL) resultou na demissão de dezenas de funcionários, criando uma lacuna na pesquisa de semicondutores na região.
Desempregado, Leão criou um projeto a ser apresentado para empresas estrangeiras, visando a incorporação dos ex-funcionários do Ceitec e o estabelecimento de uma unidade de pesquisa e desenvolvimento financiada por capital privado na capital gaúcha.
Um mês após os primeiros contatos, a multinacional britânica EnSilica apresentou uma oferta de trabalho a 12 profissionais egressos do Ceitec. Pouco tempo depois, a norte-americana Impinj fez uma proposta para contratar todos os 30 ex-funcionários da estatal, e acabou incorporando aos seus quadros os 18 restantes.
“Se tivéssemos mil pessoas, em vez de 30, acredito que cerca de 15 empresas estariam aqui em Porto Alegre", afirmou Leão à reportagem da Revista da PUC-RS.
A partir da associação de ambas as empresas ao Parque Científico e Tecnológico da PUC-RS (Tecnopuc), o Brasil ganhou duas design houses focadas no desenvolvimento de projetos de circuitos integrados – um dos estágios iniciais da cadeia produtiva de semicondutores.
Em paralelo, a HT Micron estabeleceu uma parceria com o Tecnosinos, departamento de ciência e tecnologia da Unisinos, para abrigar uma unidade de teste e encapsulamento de chips.
"Guerra dos chips"
O processo de produção de semicondutores é segmentado e altamente especializado. Atualmente, existem apenas quatro empresas aptas a fabricar chips de última geração, com transistores de oito nanômetros, cuja unidade equivale a um bilionésimo de metro: TSMC, a Intel, a Samsung e a GlobalFoundries.
A experiência gaúcha revela que isso não impede o Brasil de tomar parte em uma indústria que faturou US$ 533 bilhões em 2023, segundo a empresa de consultoria Gartner. A expectativa é que com a corrida da inteligência artificial (IA) esse montante atinja US$ 1,5 trilhão até 2030.
O desenvolvimento da indústria para além do sudeste asiático, que hoje concentra 80% da produção mundial, faz parte da estratégia geopolítica dos Estados Unidos e da União Europeia, que recentemente anunciaram investimentos pesados para financiar empresas do setor e iniciativas de pesquisa e desenvolvimento, incluindo aplicações militares.
Em 2024, a Intel levantou US$ 8,5 bilhões junto ao governo dos Estados Unidos. Antes disso, em 2022, o então presidente Joe Biden assinou a Lei dos Chips, destinando investimentos de US$ 52 bilhões (cerca de R$ 290 bilhões) ao setor privado.
Em resposta, a China direcionou US$ 47,5 bilhões (cerca de R$ 260 bilhões) para a terceira fase do seu Fundo Nacional de Investimento na Indústria de Circuitos Integrados.
Segundo Adão Villaverde, professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação da Escola Politécnica da PUCRS, o Brasil deve avançar no desenvolvimento de sua própria cadeia produtiva, investindo também na produção de chips, ainda que o objetivo não seja competir com as grandes empresas do setor:
“Sem chip, não há transformação digital soberana. Economias que não dominam essa tecnologia serão, mais cedo ou mais tarde, superadas. Estamos em um momento único para o Brasil se aprofundar no tema.”
Expansão do setor conta com apoio governamental
Em 2024, já sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governo federal criou o Programa Brasil Semicondutores e estendeu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico à Indústria de Semicondutores (Padis).
O ato prorrogou e ampliou os incentivos fiscais para empresas do setor para estimular a pesquisa e a inovação nas cadeias de chips e eletroeletrônicos. Ao todo, serão R$ 7 bilhões por ano, totalizando R$ 21 bilhões até 2026.
Em paralelo, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) promove cursos de formação em microeletrônica e semicondutores, em parceria com universidades e a iniciativa privada, oferecendo bolsas de residência e treinamento. O programa CI Inovador, por exemplo, abriu 250 vagas no início deste ano.
Inicialmente, as medidas do governo visam fortalecer as etapas de design, teste e encapsulamento de chips, áreas nas quais o Brasil já possui tradição e que não exigem investimentos tão elevados quanto a instalação de fábricas.
Inspirada no exemplo da Nvidia, líder global do mercado de semicondutores para IA e outros fins que não possui fábricas próprias para a produção de chips, a EnSilica pretende investir em propriedade intelectual, terceirizando a fabricação de seus produtos finais.
Atualmente, o escritório da EnSilica em Porto Alegre cresce mais rápido do que o da matriz inglesa, devido à qualidade dos engenheiros locais. A parceria com a PUC também é estratégica para atrair novos talentos.
“Quando viemos para o Tecnopuc, precisávamos de espaço para 12 pessoas, mas já projetávamos uma equipe maior. Hoje, nossa sala de 30 lugares tem apenas dois espaços vazios, e a empresa deve expandir para 32 funcionários ainda este ano", afirmou Leão.
Conforme noticiado recentemente pelo Cointelegraph Brasil, o presidente Lula rejeitou o monopólio global das tecnologias de IA, em defesa de um sistema unificado de governança global.