O Banco Central (BC) encerra no próximo domingo, 24, o prazo para envio de contribuições à Consulta Pública 122/2025, que estabelece novas diretrizes contábeis para empresas e startups que operam no mercado de criptoativos no Brasil.

O objetivo do regulador é criar um padrão unificado para o registro de criptoativos no balanço de instituições financeiras e outras entidades autorizadas pelo BC, alinhando a regulação no país a padrões internacionais.

Embora a medida seja vista como um avanço por tornar o mercado juridicamente mais seguro e transparente, especialistas ouvidos pelo Cointelegraph Brasil alertam para a necessidade de ajustes que garantam a justa concorrência e não sufoquem a inovação no setor.

Princípios da normatização: reconhecimento inicial e mensuração

A Consulta Pública 122/2025 apresenta propostas para regulamentação de critérios contábeis para o reconhecimento, mensuração, baixa e divulgação de criptoativos e tokens de utilidade por instituições financeiras e demais empresas autorizadas pelo BC.

Vanessa Butalla, VP Jurídico, Compliance e Regulação do Mercado Bitcoin (MB), afirma que a iniciativa do BC representa um avanço importante, que tende a trazer maior segurança jurídica para exchanges, investidores e o ecossistema como um todo:

“A padronização contábil tende a trazer regras claras e previsíveis para auditoria, aproximando a prática contábil brasileira das melhores referências internacionais (como IFRS 13 – fair value measurement). Isso significa mais transparência e consistência na forma como os ativos digitais são refletidos nos balanços das instituições.”

Uma das principais propostas diz respeito à obrigatoriedade de que criptoativos como o Bitcoin (BTC) e o Ethereum (ETH) sejam contabilizados pelo seu “valor justo” nos balanços das empresas. Ou seja, pelo seu valor de mercado, que deve ser reavaliado periodicamente.

“A Consulta Pública 122/2025 estabelece o tratamento contábil dos criptoativos em duas etapas", explica Anna Lucia Berardinelli, sócia da área de Ativos Digitais, Blockchain e Web3 do Villemor Amaral Advogados. "Primeiro, como o ativo é reconhecido no balanço das empresas e, depois, como deve ser mensurado ao longo do tempo, considerando diferentes formas de aquisição, emissão ou custódia".

A minuta detalha que, para o reconhecimento inicial, criptoativos e tokens de utilidade devem seguir abordagens distintas:

  • Se adquiridos, devem ser registrados pelo valor pago;

  • Se recebidos por prestação de serviços (como mineração ou staking), o registro ocorre pelo valor justo na data do cumprimento da obrigação;

  • Se recebidos gratuitamente (como em airdrops), o reconhecimento é feito pelo valor justo na data do recebimento;

Na mensuração subsequente, a regra geral é que os criptoativos sejam contabilizados pelo seu valor justo, com exceção dos tokens de utilidade e NFTs (tokens não fungíveis), que devem ser registrados pelo custo de aquisição, com provisões para eventuais prejuízos.

Enquanto o valor justo exige que as empresas reavaliem o valor do ativo periodicamente (mensalmente, no caso da proposta do BC) para refletir lucros e prejuízos, o custo líquido de provisões exige apuração anual ou sempre que houver evidências de desvalorização significativa. Além disso, ativos virtuais emitidos por entidades do mesmo grupo econômico terão sua mensuração baseada no menor valor entre o custo de aquisição e o valor justo, com variações reconhecidas no resultado.

Anna Lucia pondera que, embora o modelo do BC represente um avanço na padronização das regras contábeis, ele “ainda deixa zonas cinzentas para categorias como tokens de pagamento e tokens de investimento, que não aparecem de forma expressa.”

“A ausência dessas distinções pode gerar insegurança e distorções, ao impor o mesmo tratamento a ativos com naturezas jurídicas e econômicas bastante diversas", acrescenta a advogada.

Regras para baixa contábil e custódia de criptoativos

A minuta também prevê a baixa contábil de criptoativos e tokens de utilidade em casos específicos: venda, transferência substancial dos riscos e benefícios associados, ou quando um ativo é descontinuado – seja por iniciativa do emissor, ou no caso de ativos descentralizados, quando perdem seu valor de mercado.

Caroline Nunes, fundadora da InspireIP, aponta que esta é uma norma que precisa ser ajustada, uma vez que “não ficou claro o critério sobre quando baixar um ativo do balanço.”

Para os criptoativos emitidos pela própria instituição, o tratamento contábil é distinto: se a emissão gerar um compromisso ou obrigação de compensação em dinheiro ou outro ativo financeiro, é reconhecido como passivo; caso contrário, se o ativo for negociado sem qualquer compromisso ou obrigação posterior, apenas a receita pelo valor recebido é reconhecida no resultado.

A proposta do BC estabelece ainda que criptoativos de terceiros mantidos sob custódia de instituições financeiras devem ser registrados em conta de compensação pelo valor justo, com reavaliações mensais. Se a instituição custodiante utilizar esses ativos em suas próprias operações, deverá reconhecer um passivo financeiro correspondente ao valor justo do ativo custodiado.

Essa medida é uma salvaguarda importante para os investidores, pois garante que seus ativos não sejam utilizados sem o devido reconhecimento contábil, exigindo que as empresas tenham uma contrapartida clara para o uso desses fundos.

Concorrência desigual: Startups vs. incumbentes

Tobias Kleitman, CEO da plataforma de pagamentos em criptomoedas LiberPay, entende como positiva a normatização das regras contábeis, pois sinaliza o amadurecimento do mercado cripto brasileiro. No entanto, ele aponta três ajustes que precisam ser incorporados à proposta original:

“Primeiro, é crucial distinguir provedores de tecnologia não custodiais, como nós, de intermediários financeiros. Segundo, sugerimos a proporcionalidade da regra, com exigências mais simples para micropagamentos do dia a dia, a fim de não frear a adoção. Por fim, a regulação deveria aproveitar as ferramentas tecnológicas, como a rastreabilidade da blockchain, para uma supervisão moderna, sempre em equilíbrio com a privacidade do usuário e em total conformidade com a LGPD. Isso criaria um ambiente ainda mais seguro, usando o melhor da tecnologia para fins de compliance.”

Caroline, da InspireIP, também apoia a regulação das normas contábeis, mas pondera que o resultado dependerá da forma como as regras serão implementadas:

“Se for gradual e com apoio técnico, pode democratizar o acesso ao mercado regulado. Se for muito rígido, pode acabar concentrando o mercado nas mãos dos grandes players. A chave está em encontrar o equilíbrio entre proteção ao investidor e preservação da inovação que as startups trazem.”

A fundadora da InspireIP lembra também que os custos de implementação de sistemas de registro contábil em conformidade com a proposta do BC terão um custo mais pesado para pequenas empresas e startups do setor:

“Um banco grande dilui isso no meio de mil outros produtos, mas uma startup especializada em cripto/tokenização vai ter o balanço dançando conforme o Bitcoin sobe e desce.”

A concorrência desigual pode se aprofundar ainda mais, considerando que os recursos empregados na contabilidade “poderiam estar sendo usados para desenvolver produto e conquistar cliente", afirma Caroline.

Anna Lucia, da Villemor Amaral Advogados, lembra que a data sugerida para entrada em vigor das novas regras concede uma vantagem adicional para os incumbentes:

“Exigir plena adaptação já em janeiro de 2026 é um desafio imenso para startups e PSAVs. Sem mais tempo e calibragem adequada, a norma pode favorecer apenas os grandes players e reduzir a pluralidade que caracteriza o setor cripto.”

A imposição de um cronograma comum para que todas as empresas se adequem às novas regras é inapropriada, concorda Caroline: “Faria mais sentido começar com as instituições grandes e ir descendo gradualmente.” A fundadora da InspireIP também defende a revisão da obrigatoriedade de reavaliação mensal dos balanços:

“A frequência mensal de reavaliação poderia ser flexibilizada para quem tem exposição pequena, já que não faz sentido a mesma burocracia para quem tem 0,5% do patrimônio em cripto e para quem tem 20%.”

Anna Lucia aponta outros ajustes necessários para o aprimoramento das normas: “ampliar a classificação para contemplar tokens de pagamento e de investimento; permitir alternativas ao valor justo, como custo amortizado, para ativos sem mercado ativo; reconhecer políticas próprias de baixa contábil, sobretudo em protocolos descentralizados; e reforçar a regulação da custódia institucional.”

Essas e outras sugestões serão analisadas pelo BC após o encerramento da consulta pública neste domingo para que a normatização das regras contábeis para criptoativos seja estabelecida.

A interlocução do mercado com o BC é fundamental para assegurar que a regra final seja clara, aplicável e compatível com a realidade dos ativos digitais, das exchanges e dos investidores", afirma Vanessa, do MB, acrescentando:

“O mais importante é que, ao consolidar a minuta final, o BC considere o dinamismo do mercado, reconhecendo que estamos diante de um ecossistema em constante evolução, no qual soluções normativas precisam equilibrar padronização, segurança e flexibilidade operacional”, conclui.