Principal mercado da região e líder em quantidade total de usuários e volume negociado, o Brasil está perdendo o protagonismo no ecossistema cripto latino-americano para a Argentina.

Com uma regulação amigável implementada após a posse de Javier Milei na presidência e uma adoção impulsionada pela necessidade de proteção contra desvalorização do peso argentino, o país tornou-se o principal hub de criptoativos da região, afirma Luiz Hadad, pesquisador líder do “Blockchain – Relatório Latam 2025”, da Sherlock Communications, em entrevista ao Cointelegraph Brasil.

“O Brasil continua sendo o país número um em adoção na América Latina, mas a Argentina virou a queridinha do público e das organizações estrangeiras entrando na América Latina”, afirma Hadad.

O protagonismo argentino na região se deve à nova abordagem regulatória implementada pelo governo, segundo o relatório:

“A Argentina passou de um cenário regulatório hostil para um muito mais amigável. A Lei nº 27.739 (março de 2024) alterou a lei de prevenção à lavagem de dinheiro, definiu ativos virtuais e criou um registro obrigatório de PSAVs (Provedores de Serviços de Ativos Virtuais) sob a supervisão da Comissão Nacional de Valores Mobiliários (CNV).”

No Brasil, por sua vez, a regulação não avançou significativamente desde a aprovação da Lei de Ativos Virtuais em 2022, que atribuiu a supervisão do mercado ao Banco Central (BC) e à CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Embora ambas as autarquias tenham promovido consultas públicas para discutir as regras aplicáveis aos agentes do setor, as diretrizes para atividades dos Provedores de Serviços de Ativos Virtuais (PSAVs) ou do uso de stablecoins em operações de câmbio ainda não foram implementadas.

O governo brasileiro também pretende aumentar a carga tributária sobre o lucro obtido com transações de criptoativos, aponta o relatório:

“Desde 2024, aplica-se uma alíquota de 15% sobre criptoativos mantidos em exchanges estrangeiras. Uma medida provisória apresentada em 2025 eliminará a isenção de R$ 35 mil por mês, substituindo as faixas progressivas de tributação por uma alíquota única de 17,5% sobre todos os ganhos.”

Ao analisar o cenário regulatório em ambos os países, Hadad aponta que, enquanto a Argentina fez uma transição de um ambiente “hostil” para um “muito mais amigável”, o Brasil começou a impor restrições ao setor sem avançar com políticas favoráveis à adoção:

“O Brasil tinha um contexto regulatório muito mais favorável. Fomos um dos primeiros países a aprovar a negociação de ETFs de criptoativos, aprovamos a Lei de Ativos Virtuais, oferecíamos mais estabilidade às entidades do mercado. Com as mudanças na orientação política dos governos na Argentina e no Brasil, eles avançaram, enquanto no Brasil as condições se estagnaram, para não dizer que piorou.”

Mesmo que o tamanho do mercado brasileiro seja um diferencial para empresas do setor, a Argentina cada vez mais se torna a porta de entrada para o mercado de criptoativos na região.

Adoção por necessidade na Argentina, institucionalização no Brasil

O relatório destaca que a Argentina é o país líder no recebimento de recursos em criptoativos na América Latina. O país registrou um volume de US$ 91 bilhões em transações on-chain entre julho de 2023 e junho de 2024. Mesmo com apenas 20% da população brasileira, isso posiciona a Argentina como o país mais ativo da região nesse quesito.

Na Argentina, a adoção tem sido em grande parte motivada por necessidade. Com uma inflação crônica, que chegou a 211% ao ano em 2023 e 118% em 2024, combinada com um limite mensal de US$ 200 para aquisição da moeda americana no mercado regular, os argentinos foram pioneiros na adoção de stablecoins para proteção de patrimônio, aponta Hadad:

“Por conta desse histórico de hiperinflação na Argentina, a população ficou muito aberta a, entre aspas, tomar esse risco de investir em cripto. As stablecoins, que eles chamam carinhosamente de ‘cripto dólares’, são o principal motor da adoção dos criptoativos na Argentina.”

Apesar dos recentes avanços regulatórios, na Argentina os bancos não oferecem serviços de negociação de criptoativos e não há oferta de ETFs ou fundos temáticos. Isso também favorece a adoção de soluções de autocustódia, maior atividade on-chain e o uso de aplicações e exchanges locais.

Segundo Hadad, os argentinos enfrentaram dificuldades que os obrigaram a ter uma curva de aprendizado mais rápida e isso, naturalmente, forjou uma comunidade mais alinhada ao ethos da Web3. No Brasil, por outro lado, a adoção ganhou força nos últimos anos através da via institucional. Grandes bancos como Itaú, Nubank e BTG Pactual oferecem produtos de criptoativos diretamente aos seus clientes, tornando o acesso mais fácil para um público mais amplo.

“Enquanto a adoção no Brasil é liderada por players do TradFi, o crescimento da Argentina é liderado por exchanges de cripto, e um sinal disso é o crescimento de 93% nos downloads de aplicativos de cripto ano a ano", destaca o relatório. “Quatro em cada dez sessões de usuários latino-americanos agora têm origem na Argentina, que lidera como o país com mais carteiras ativas na região e ocupa o quarto lugar no mundo em 2024.”

Se no Brasil a Binance possui uma participação de mercado de cerca de 50%, na Argentina ela divide a preferência dos usuários com a exchange local LemonCash, que oferece acesso a soluções de DeFi (finanças descentralizadas) em sua plataforma. Ambas as empresas somam 64% das carteiras ativas no país.

A ausência de intermediários bancários forçou as corretoras e a própria comunidade a assumir um papel mais ativo na educação de potenciais usuários. Consequentemente, a Argentina atrai os principais eventos de desenvolvedores sediados na América Latina.

Este ano, por exemplo, Buenos Aires será sede do Devconnect, uma das conferência mais relevantes do ecossistema da Ethereum. No Brasil, em geral, os grandes eventos ainda são mais focados no mercado interno e na educação do usuário final.

Mais do que eleger um líder regional, o relatório procura destacar como a regulação impacta a adoção de criptoativos na região e a importância do intercâmbio entre diferentes experiências e comunidades para o avanço do ecossistema cripto na América Latina.

Em um exemplo recente do protagonismo dos reguladores argentinos, a prefeitura de Buenos Aires anunciou que passará a aceitar criptomoedas para pagamento de impostos municipais. Além disso, a capital antecipou quatro medidas do BA Crypto, um arcabouço regulatório que visa fomentar o ecossistema cripto na cidade.