Em uma entrevista recente concedida a Camila Russo no podcast The Defiant, o criador do Ethereum (ETH), Vitalik Buterin, afirmou que as pessoas só conseguirão entender a importância das redes descentralizadas quando tiverem seus direitos e liberdades ameaçados por governos ou corporações.

Como esse tipo de ameaça é algo ainda muito distante das grandes democracias ocidentais em que se concentram grande parte dos desenvolvedores e usuários de criptomoedas, completou Buterin, a descentralização é entendida como algo menor diante dos benefícios do processamento de transações mais rápidas e a custo mais baixo.

A entrevista foi concedida antes que os desdobramentos dos protestos antivacina dos caminhoneiros canadenses ganhassem contornos dramáticos. Na segunda-feira, 14, o primeiro-ministro Justin Trudeau invocou a Lei de Emergências para impor uma série de restrições às movimentações financeiras não apenas dos manifestantes, mas também de todos aqueles que realizaram doações em favor do movimento. 

Criada em 1988 e nunca antes usada, a lei determina que bancos, exchanges de criptomoedas, cooperativas de crédito e companhias de seguros devem reportar-se ao governo para prestar informações que ajudem a debelar os protestos.

De acordo com a lei, as instituições financeiras estão autorizadas a impor as seguintes sanções aos manifestantes, qualificados como "pessoas designadas":

- Monitorar e bloquear todas as transações feitas para financiar os protestos;

- Relatar detalhes de transações vinculadas a certos indivíduos, além de listar as propriedades que eles possuem, ao Serviço de Inteligência de Segurança Canadense (CSIS) e à Polícia Montada Real Canadense (RCMP);

- Cortar completamente os vínculos de clientes com manifestantes ligados ao protesto. Isso inclui o cancelamento de cartões de crédito e o congelamento de contas.

- E o congelamento das apólices de seguros dos veículos envolvidos nas manifestações.

Os bancos vão agir em coordenação com as forças de segurança do país para determinar quem será alvo das sanções.

Quando Vitalik Buterin se referiu à importância das redes descentralizadas como arma de combate a regimes autoritários, ninguém poderia esperar que justamente o Canadá, até então tido como uma democracia plena e saudável, pudesse explicitar de forma simples e clara a importância de uma moeda apolítica, não controlada por estados nacionais e descentralizada como o Bitcoin (BTC).

Como destacou em um longo thread no Twitter o perfil pseudônimo @punk6529, conhecido por suas reflexões filosóficas acerca dos efeitos disruptivos da tecnologia blockchain, "não há outros direitos constitucionais em substância sem que haja liberdade para transacionar."

E a razão é muito simples, ele explica: há muito pouca coisa que se possa fazer quando não se tem dinheiro para gastar. Pior ainda é ter dinheiro e ser impedido de gastá-lo em razão de determinado posicionamento político. Afinal, regimes democráticos pressupõe que sempre haverá os governantes de plantão de um lado e de outro um ou mais grupos que se opõe a eles.

Canadá (2022)

Imediatamente após a imposição da Lei de Emergências no Canadá, o Google Trends registrou um aumento explosivo de buscas pelo termo "bank run" - fuga dos bancos em tradução literal. Nesse caso, o refúgio mais óbvio são as criptomoedas, e em especial o Bitcoin. Pois embora o governo canadense tenha incluído as exchanges de criptomoedas no escopo do ato emergencial, os usuários que mantém a custódia dos seus criptoativos estão fora do alncance da lei e portanto estão aptos a preservar seus direitos de realizar transações livremente.

A Lei de Emergências do Canadá é o exemplo mais óbvio da materialização da advertência de Vitalik Buterin para um público amplo. No entanto, não é a primeira vez que o Bitcoin se apresenta como um instrumento para burlar restrições às liberdades financeiras de cidadãos acossados pelo Estado.

A seguir, o Cointelegraph Brasil relembra outros cinco casos históricos listados em uma postagem da Paradigma Education publicada nesta sexta-feira no Instagram em que o Bitcoin foi utilizado para restituir a liberdade financeira a cidadãos que tiveram seus direitos restringidos ou sustados por atos governamentais arbitrários.

WikiLeaks (2011)

O WikiLeaks é um órgão transnacional sem fins lucrativos, sediado na  Suécia, que torna públicos documentos, fotos e informações confidenciais vazadas de governos ou empresas sobre assuntos de interesse público.

Em 2010, o WikiLeaks divulgou uma série de documentos confidenciais do governo dos EUA e teve seus canais de financiamento bloqueados um a um. Em seis meses, instituições tradicionais como Visa, Mastercard e Bank of America e fintechs como o PayPal passaram a bloquear doações à organização como forma de inviabilizar suas operações.

O Bitcoin ainda era uma tecnologia nova, com uma base de usuários restrita, associada majoritariamente a atividades ilícitas, quando o Wikileaks se mobilizou para solicitar doações em BTCs. O crescimento da base de usuários da criptomoeda fora impulsionado pelo Silk Road, um marketplace anônimo em que justamente pela privacidade entre as partes envolvidas nas transações o Bitcoin tornou-se moeda corrente para transações envolvendo toda a sorte de produtos cuja comercialização era legalmente proibida. Especialmente drogas.

A notícia causou preocupação até mesmo a Satoshi Nakamoto, o anônimo criador do Bitcoin. “O Wikileaks chutou o ninho de vespas e o enxame está vindo em nossa direção", escreveu Satoshi em uma de suas últimas mensagens públicas. Ele temia que as doações ao Wikileaks através da rede do Bitcoin atrairiam atenção das autoridades, colocando em risco o futuro do então nascente experimento.

Em resposta a um usuário que elogiara a iniciativa, considerando-a um acontecimento positivo para o crescimento da rede, Satoshi foi taxativo:

"Não. O projeto precisa crescer gradualmente para que o software possa ir se fortalecendo ao longo do caminho. Faço este apelo ao WikiLeaks para não tentar usar o Bitcoin. O Bitcoin é uma pequena comunidade beta em sua infância. Você não coseguiria levantar mais do que alguns trocados, e a pressão que você traria provavelmente nos destruiria neste estágio."

Diante do apelo, o WikiLeaks decidiu adiar o lançamento da campanha de doações em Bitcoin até que a rede estivesse mais robusta. A chave pública para doação de Bitcoin do WikiLeaks foi criada após o primeiro grande salto na valorização da criptomoeda, em 14 de junho de 2011. 

Entre 2011 e 2018, o Wikileaks recebeu milhões de dólares em doações via Bitcoin e manteve-se ativo e operante, denunciando os subterrâneos do poder de governos e corporações globais.

Chipre (2013)

Os termos da negociação da União Europeia com o governo do Chipre para resgatar o sistema bancário do país da insolvência determinou que os clientes das instituições teriam que arcar com parte do prejuízo. Depósitos acima de € 100.000 seriam taxados em 9,9%. A notícia provocou uma corrida da população aos bancos para salvar suas economias no início de 2013.

Muito antes do surgimento da narrativa do Bitcoin como ativo de proteção, muitos cipriotas optaram por converter a moeda local em BTC. Como resultado, o Bitcoin disparou. Em menos de duas semanas, entre 16 e 28 de março, a cotação do par BTC/USD saltou de US$ 47 para US$ 88, e o volume de transações cresceu na mesma proporção. Como intuíra Satoshi Nakamoto, o descrédito do sistema bancário representaria o sucesso de sua invenção.

Argentina (2019)

Em setembro de 2019, o governo do presidente Mauricio Macri instituiu um limite mensal para compra de dólares por pessoas físicas na Argentina, um país em que a dolarização informal é uma tradição que remonta pelo menos aos anos 1980. A medida foi uma tentativa de conter a crise econômica que assolava - e ainda hoje assola - o país, estabilizando o câmbio para supostamente proteger os cidadãos argentinos.

Inicialmente, o limite determinado pelo governo era US$ 10.000 por mês. Mas em pouco mais de um mês foi reduzido drasticamente para US$ 200. Diante desta imposição, a população argentina recorreu ao Bitcoin. O volume diário de negociações no país mais que triplicou em relação ao ano anterior, motivado também pela iminência das eleições presidenciais que acabaram sendo vencidas pela chapa oposicionista composta por Alberto Fernandez e a ex-presidente Cristiina Kirchner.

Na ocasião, entre 24 e 27 de outubro, o preço do Bitcoin também subiu de forma consistente, de US$ 7.500 para US$ 9.551. Não necessariamente por conta da demanda pelo criptoativo na Argentina, mas muito por conta de notícias positivas para o mercado cripto nos EUA e na China.

Em outubro do ano passado, o Cointelegraph Brasil noticiou que a combinação da depreciação do peso argentino à valorização do Bitcoin fez com que, momentaneamente, a Argentina tivesse o BTC mais caro do mundo.

Nigéria (2020)

Uma onda de insatisfação tomou a Nigéria em 2020 a partir de uma mera hashtag que se propagou através das redes sociais: #endSARS. A campanha virtual contra a violência de uma unidade policial acusada por assassinatos à sangue frio acabou se convertendo em protestos em massa em diversas regiões do país.

Inicialmente, a resistência organizada angariou recursos de simpatizantes do movimento do país e do exterior através da rede bancária local e de meios de pagamento digitais. No entanto, aos poucos os fundos foram parando de chegar aos destinatários, muito provavelmente por conta de uma ação do governo, que, nos bastidores, pressionou as instituições financeiras do país para bloquearem as transações.

As criptomoedas já eram populares no país por conta das deficiências do sistema bancário e da própria fraqueza da naira, a moeda local. Então, em pouco tempo o movimento se mobilizou para angariar fundos via Bitcoin. O então CEO do Twitter e maximalista do Bitcoin, Jack Dorsey, foi um dos muitos que contribuiu com uma doação em favor dos manifestantes.

Quando os protestos se encerraram, em outubro, contabilizou-se que 40% do total das doações recebidas pelo movimento haviam sido feitas em Bitcoin.

Afeganistão (2021)

Em agosto do ano passado, o Talibã retomou o controle sobre o Afeganistão. O presidente norte-americano Joe Biden organizou uma retirada das tropas e dos cidadãos dos EUA baseados no país às pressas e a população afegã ficou órfã de liberdades civis, entregue aos fundamentalistas islâmicos.

Imediatamente, uma crise de liquidez se instalou no Afeganistão. Os EUA apreenderam ativos do banco central afegão e bloquearam as transferências em dólar para o país. A Sociedade para Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais, conhecida como sistema SWIFT, que sustenta as transações financeiras internacionais, suspendeu os serviços no Afeganistão. Os bancos comerciais simplesmente fecharam as portas ou impuseram limites bastantes estritos para saques, além de vedarem quaisquer possibilidade de realização de empréstimos aos seus clientes.

A alternativa foi recorrer a doações da comunidade internacional via criptomoedas como forma de subsistência. Foram várias as vantagens para a população local: os afegãos que deixaram o país puderam converter seus fundos em Bitcoin sem correr riscos de andar com dinheiro vivo ou bens de valor durante a fuga. As agências humanitárias que não recebem apoio dos bancos e precisam contornar o controle do Talibã, puderam transferir dinheiro diretamente aos necessitados. Contrabandistas e intermediários se tornaram dispensáveis diante da possibilidade de realizar transações por meios digitais.

Ainda assim, alguns limites se impuseram a uma adoção mais ampla dos ativos digitais no Afeganistão. Entre elas a educação precária em diversas regiões do país e a aceitação limitada por parte dos comerciantes. Apesar das dificuldades, algumas instituições locais e de ajuda humanitária estão se organizando para educar a população, uma vez que não há previsão de quando o sistema financeiro afegão poderá se reestruturar para atender às necessidades da população.

Dinheiro apolítico

Um antigo comentário de Gavin Andresen, o desenvolvedor mais próximo de Satoshi Nakamoto nos primórdios do Bitcoin, é ilustrativo a respeito da natureza apolítica do Bitcoin:

"Não podemos controlar para que os Bitcoins são usados: coisas boas e coisas que não são tão boas. Essa é a natureza da besta."

Dependendo da visão de mundo particular de cada um, certos casos de uso são mais adequados do que outros. Uma coisa, no entanto, é indisputável: há que se ter liberdade para usá-lo dentro dos limites de leis que não configurem estados de exceção.

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