No dia 19 de outubro, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) publicou um relatório sobre resoluções de conflitos online entre empresas e consumidores. A Kleros, plataforma para a resolução descentralizada de conflitos, foi mencionada como uma das tecnologias promissoras nessa frente.
O Cointelegraph Brasil conversou com Federico Ast, fundador e CEO da Kleros, sobre o papel do protocolo na Web3 e o futuro da resolução de litígios usando a blockchain.
Cointelegraph Brasil – A Kleros se apresenta como uma forma de resolver conflitos de forma descentralizada. Como o protocolo funciona?
Federico Ast – A melhor maneira de compreender o funcionamento interno da Kleros é observar a forma como funciona o nosso tribunal.
O tribunal é o principal motor do portfólio de serviços e produtos da Kleros. É a face do nosso protocolo de resolução de disputas, proporcionando arbitragem para o tipo de conflitos subjetivos que os contratos inteligentes não abordam. Isso é feito com um conjunto de jurados sorteados aleatoriamente para cada disputa e fazendo-os votar para garantir um determinado veredicto.
As disputas são enviadas a partir de plataformas integradas (que chamamos de arbitráveis) e encaminhadas ao tribunal (chamado de árbitro). Depois de listada como disputa, três etapas são executadas:
- Primeiro, o sistema escolhe aleatoriamente os jurados em um tribunal especificado para o caso em questão;
- Em seguida, o caso entra no período de apresentação de provas, onde todas as partes interessadas (disputantes, jurados, contestadores e qualquer agente externo) podem apresentar suas provas;
- Terminado o período de provas, os jurados podem votar no caso e vence a opção com mais votos.
Caso alguma das partes discorde da decisão inicial, existe um processo de recurso que aumenta o tamanho da causa e o número de jurados para a próxima rodada da disputa.
Desde o início do projeto, a Kleros já resolveu cerca de 1.800 casos.
Cointelegraph Brasil – Quais são as áreas onde, hoje, a Kleros é capaz de solucionar conflitos?
Ast – Kleros é uma ferramenta flexível, que pode ser usada para uma infinidade de casos de uso diferentes. Por exemplo, a Kleros pode até ser usada como suporte para um sistema de identidade descentralizado, como o Prova de Humanidade, que foi desenvolvido pela nossa equipe.
Desde a nossa criação, nos concentramos principalmente em casos de maior valor que surgem nos ecossistemas de finanças descentralizadas, seguros de criptoativos e mercados de previsão. Com a ascensão das L2 [blockchains de segunda camada] do Ethereum e a redução geral das taxas de gas, agora podemos nos concentrar mais em casos de uso de menor valor, como disputas sobre consumo.
Um marco importante para o projeto ocorrerá no início do próximo ano, com o lançamento da Kleros 2.0, que traz consigo uma versão completamente renovada do protocolo. A Kleros 2.0 inclui uma ampla gama de melhorias, como procedimentos de seleção de júri mais sofisticados, lógicas avançadas de tomada de decisão, permitindo casos de uso mais complexos. Além disso, teremos uma redução nos custos de quase dez vezes em relação à versão anterior.
Em essência, isto significa uma capacidade de resolver mais disputas com valores mais baixos, criando assim um mercado para categorias de disputas, como reclamações de consumidores e moderação de conteúdo. Esse avanço se traduz na transformação da Kleros em um sistema de ‘microjustiça para microdisputas’, interagindo com outras tecnologias, como inteligência artificial, a fim de resolver um grande número de reclamações de uma forma justa, transparente e eficiente.
Cointelegraph Brasil – Recentemente, a Kleros foi mencionada em um relatório da ONU. O que isso significa para o protocolo e para a indústria blockchain no geral?
Ast – O título do relatório em questão é “Tecnologia e o Futuro da Resolução de Disputas Online (ODR) – Plataformas para Agências de Proteção ao Consumidor”, publicado pela UNCTAD, a Comissão das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Nele, a Kleros é analisada como uma das principais tecnologias que moldam o futuro da resolução de disputas para reclamações de consumidores.
Dito isto, esta não é a primeira vez que colaboramos com a ONU. No passado, trabalhamos com a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL), enquanto, atualmente, colaboramos com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) na investigação dos desafios de resolução de litígios no contexto dos esportes eletrônicos. Se estiverem interessados em sobre o assunto, realizaremos um webinar juntos no dia 14 de dezembro.
Para nós, esta menção não é novidade, uma vez que procuramos nos envolver com instituições conceituadas desde os primeiros dias do projeto, abrindo caminho para mais reconhecimento, legitimidade e credibilidade, a fim de nos tornarmos um modelo aceitável para a resolução de litígios a nível global.
Menções notáveis aqui são, definitivamente, a nossa incubação inicial pela Thomson Reuters, uma das empresas de tecnologia jurídica mais importantes do mundo, bem como o apoio da União Europeia através do seu programa “Horizons 2020 – Blockchains para o Bem”. As nossas pesquisas também são financiadas, em parte, pelo Banco Francês de Inovação, o BPI.
Esse tipo de experiência de trabalho tem sido extremamente útil, não apenas para aprendermos sobre casos de uso do mundo real onde Kleros pode fornecer uma solução para inclusão na justiça, mas também para a indústria blockchain em geral, especialmente depois que sua reputação foi manchada pelos escândalos envolvendo o ecossistema LUNA e a FTX.
Existem dois ingredientes que a Kleros traz para a mesa que podem ajudar a indústria blockchain como um todo. Em primeiro lugar, o seu foco não é financeiro e, por isso, não pertence à categoria de “jogo financeiro complicado”. Em segundo lugar, é um problema que todos entendem: qualquer pessoa que já teve uma disputa com uma empresa entende o que a Kleros oferece. Por exemplo, se a administradora do seu cartão de crédito cobrou algo que você não comprou, ou se você comprou algum produto danificado de um vendedor em um mercado de comércio eletrônico.
Para ganhar legitimidade, a indústria blockchain precisa provar que pode resolver problemas reais do dia a dia das pessoas comuns. E acho que a Kleros pode ser um passo importante nessa direção.
Cointelegraph Brasil – Com base nas interações com a comunidade, quais países atualmente mais interagem com a Kleros?
Ast – Dado que não existe um processo KYC [identificação de usuários] nos nossos tribunais, e não há limites para a participação, não é fácil avaliar de onde vem a nossa comunidade. Dito isto, sinto que grande parte da nossa comunidade vem da Argentina, de onde eu sou, e da França, país de origem dos cofundadores da Kleros.
Temos um número significativo de membros da comunidade que são da América Latina, especialmente da Colômbia e do Brasil. Suponho que a razão para isto é que estes são países grandes, que têm uma quantidade especificamente elevada de advogados per capita. Nos últimos tempos, também temos visto algum crescimento da nossa comunidade na África.
Cointelegraph Brasil – Com o amadurecimento da ‘economia on-chain’, que vai além da tokenização e explora casos de uso utilizando a blockchain, você acredita que a Kleros podem ganhar ainda mais destaque nesse novo ecossistema?
Ast – Conforme mencionado anteriormente, uma das principais características da Kleros é a sua flexibilidade e adaptabilidade. Desde a resolução de disputas de freelancers, curadoria de dados, moderação de conteúdo, reclamações de consumidores até mesmo governança DAO [organizações autônomas descentralizadas], a Kleros é capaz de cobrir muitos dos pontos problemáticos que existem na economia digital como um todo.
Usando como exemplo a governança de DAOs, a Kleros pode ser usada como uma espécie de ‘Suprema Corte’ para essas organizações. Qualquer disputa que surja da governança, e que seja considerada incompatível com a constituição de qualquer DAO, pode ser resolvida através da Kleros. Se o caso for resolvido a favor do autor, a proposta da governança pode ser anulada.
Imagine a Kleros como uma caixa de ferramentas eficaz, que pode ser usada para qualquer tipo de disputa, pequena ou grande. Com mais de cinco anos de desenvolvimento, nosso protocolo tem a capacidade de se tornar um dos pilares da economia emergente da Web3.