Muitos emojis de “olhos arregalados” foram causados por um recente artigo assinado por Marcelo d’Agosto, no Valor Econômico, por, logo na primeira frase, já sair dizendo que “Bitcoins não têm utilidade prática”. É realmente difícil encarar como “sem utilidade prática” algo que já é um mercado que gira bilhões de dólares e que foi pauta de campanha do presidente eleito dos EUA, sem falar dos milhares de traders que pagam o leite das crianças com os lucros de suas negociações.

Muito mais interessante do que o contra-ataque em si, seja tentar entender como ele honestamente poderia achar isso, pois nos leva a uma reflexão mais aprofundada sobre as criptomedas e sobre nós mesmos, enquanto indivíduos e enquanto sociedade.

Já na segunda frase, o articulista diz que “a mais valiosa e famosa criptomoeda é um ativo virtual”. Errado não está, mas, ao ignorar a história, esconde a primeira de muitas miopias: o bitcoin não nasceu um ativo virtual; ele se tornou mais amplamente aceito nessa função.

Lembremos que o bitcoin nasceu como um experimento “centífico” (entre aspas porque foi conduzido por entusiastas “amadores”, não por “profissionais”) para ver se era possível fazer um sistema de contabilização de transferências de valores em que todos os participantes pudessem, de fato, participar com os exatamente os mesmos poderes.

Todos os sistemas anteriores tinham uma segregação: um participante era “ungido” com o poder de ditar a verdade e todos os demais não tinham opção a não ser segui-lo cegamente. Isso exige do centralizador exatidão e incorruptibilidade absolutas – uma fantasia que insistimos em perseguir mesmo sabendo ser inatingível.

Para que todos possam participar, é preciso que todos possam confiar; pra isso, todos conferir por si próprios tudo que é feito e tudo que já foi feito. Essa é uma das primeiras grandes diferenças do bitcoin: transparência absoluta. Não é preciso confiar cegamente em ninguém além de si próprio. Dizer que isso não tem utilidade prática faz tantanto sentido quanto dizer que cartórios não servem pra nada.

Qualquer um pode baixar o histórico de transações, reconferir todas as contas e ter certeza de que tudo foi feito, e continua sendo feito, não 99%, não 99,99%, não na maior parte do tempo, mas em 100% dos casos 100% do tempo. Nenhum outro sistema financeiro ou bancário jamais ofereceu tal nível de exatidão, certeza e inclusividade.

O articulista até esboçou uma explicação de como enxerga que a rede funciona (“os interessados trabalham em rede, validando blocos...”), mas, ao omitir isso, passa a impressão totalmente equivocada de que o bitcoin é só mais um, quando na realidade é revolucionário. Nenhum sistema financeiro antes do bitcoin chega nem perto desse nível de auditabilidade e transparência.

Certa vez, ao explicar isso em uma palestra para operadores de um desses sistemas financeiros, um deles retrucou com talvez a mais honesta resposta que já ouvi: “sim, mas no nosso sistema, demonstrar que as contas estão 100% corretas não é requisito”.

Talvez aí esteja a cruz da questão: a esmagadora maioria das pessoas não se importa tanto assim se as contas estão certas, desde que elas acreditem que a parte das contas que lhe diz respeito estejam. Dinheiro sumir ou aparecer do nada virou corriqueiro: procure no Google por “dinheiro sumiu da conta” e vai achar cobertura jornalística de alguns incidentes. Mas, ao invés de ultraje e exigências de garantias de conserto, não nos causa mais que um muxoxo. Viver em sistemas financeiros cujo funcionamento não se entende é considerado normal. Entender as coisas, confiar em nós mesmos e auto-resiliência saiu de moda.

Nenhuma supresa, portanto, que a consciência sobre essa essência da rede Bitcoin tenha se perdido na cultura atual. Quase todo mundo hoje acessa bitcoins através das corretoras, e até as corretoras terceirizam suas custódias para empresas de TI especializadas. De tão viciados em oligopólios que somos, cercamos a rede Bitcoin – o sistema mais egalitário de contabilização do mundo – em um curral de empresas intermediadoras. Não que haja algo interentemente errado nisso – esses intermediários o tornam mais acessível. Contudo, como mais de 99% dos usuários acessa o bitcoin indiretamente através delas, é natural que tendam a achar que é tudo que existe, que não há mais nada além disso. Confunde-se o mercado com o produto.

Talvez o articulista ache que o bitcoin “não tem utilidade prática” porque não é amplamente aceito como moeda corrente. Aqui, novamente, o bitcoin é vítima do próprio sucesso: não faz sentido gastar hoje algo que vai valer mais amanhã, como o Laslo Hanyecz, o cara que pagou milhões de dólares por duas pizzas, sabe muito bem (acesse bitcoinpizzaindex.net se você não conhece essa história.)

É por isso que os economistas em geral encaram a deflação como problemática: desestimula o gasto. Moeda corrente tem de desvalorizar: tem de ser mais interessante gastá-la por algum bem ou serviço do que guardá-la. Devido a sua escassez programada e a resultante tendência de valorização frente às moedas nacionais, não faz sentido gastar bitcoin, exceto em última instância. Os economistas chamam isso de Lei de Gresham: gasta-se primeiro o “pior tipo de dinheiro”. Só pra enfatizar: isso significa que o bitcoin é o melhor tipo de dinheiro.

Se o público em geral não aprecia a essência do bitcoin, muitos poderosos entendem tão bem que têm feito de tudo para retardar sua adoção: vemos dignitários do Banco Central Europeu, do Banco de Compensações Internacionais (apelidado de “Banco Central dos Bancos Centrais”), CEOs de bancos e políticos, falando mal das criptomoedas, mas a preocupação deles é perderem a relevância – pra quem vive de criar complicação para vender solução, de que interessa um sistema em que o cidadão médio não tenha de passar por eles? E retardam apenas enquanto não se posicionam; quando enxergam onde e como se encaixam, passam a apoiar.

Alguns mais poderosos ainda entenderam tão bem a utilidade prática do bitcoin que, como o articulista falou, criaram ETFs e até estão falando em criar reservas estratégicas nacionais de Bitcoin. Numa suprema ironia, talvez o Bitcoin realmente esteja se tornando mais uma moeda das nações do que uma moeda do povo – e isso diz muito sobre nós mesmos.

Mas, pelo menos por enquanto, ainda é possível ao cidadão comum ter um pedaço dessa revolução – e, quem sabe, até lucrar um pouco das migalhas dessas batalhas de gigantes. Não estaria aí uma utilidade prática, talvez a parte que nos cabe desse latifúndio?

*Marco Carnut é Sócio-fundador e Chief Security Officer (CSO) do Zro Bank, banco digital e exchange de criptomoedas, baseado em blockchain.

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