Resumo da notícia

  • Campos Neto defende integração do DeFi ao sistema financeiro, criticando postura dos Bancos Centrais.

  • Stablecoins crescem aceleradamente em países emergentes e já impactam política monetária.

  • Tokenização, Open Finance e IA formarão a base do novo ecossistema financeiro global.

Durante o DAC 2025, evento promovido pelo Mercado Bitcoin, o ex-presidente do Banco Central do Brasil e atual VP do Nubank, Roberto Campos Neto, afirmou que os Bancos Centrais estão cometendo um erro ao tentar afastar o universo cripto do sistema financeiro tradicional. A estratégia correta, segundo sua avaliação, é exatamente o contrário: integrar o DeFi e os ativos digitais ao sistema bancário.

Campos Neto argumentou que o avanço das stablecoins já não pode ser ignorado. O movimento é global e cresce de forma acelerada, especialmente em países emergentes. Nessas regiões, onde a moeda local costuma ser pouco conversível e onde há receio de restrições de saída de capital, a demanda por moedas digitais está em forte expansão.

Segundo ele, “quanto menos conversível a moeda, maior é o desejo das pessoas por stablecoins”. Esse comportamento explica por que o crescimento desses ativos é tão expressivo em países com instabilidade cambial.

De acrodo com ele, o fenômeno já pode ser observado de perto no Brasil. O cidadão comum, que antes enfrentava dificuldades para abrir uma conta em dólar, hoje consegue manter valores nessa moeda de forma simples. Com stablecoins, qualquer pessoa pode comprar 50 ou 100 dólares em minutos, sem burocracia e sem depender de grandes instituições financeiras.

Campos Neto destacou que esse movimento veio para ficar. Em alguns mercados, o crescimento das stablecoins ultrapassa 200% ao ano. Em outros, a média gira em torno de 70%, mas sempre com forte tendência de alta.

No entanto, a função principal dessas moedas digitais ainda não é transacional. Ele explicou que, quando comparadas ao chamado “quase dinheiro”, as stablecoins apresentam três vezes menos rotatividade. Isso mostra que, na prática, os stablecoins são usados principalmente como reserva de valor e não como meio de pagamento.

O quadro muda um pouco quando entram as remessas internacionais. Nesse segmento, o crescimento tem sido muito expressivo. Ainda assim, o uso predominante segue sendo como forma de proteger patrimônio em dólar.

No entanto, segundo Campos Neto, as stablecoins entrarão em um ambiente de competição intensa. A próxima grande disrupção, segundo ele, será o desenvolvimento de soluções de segunda camada (second layer solutions), que permitam navegar entre diferentes stablecoins de forma integrada.

Quando isso acontecer, essas moedas digitais deixarão de ser utilizadas apenas como reserva de valor e passarão a cumprir, de fato, a função de meio de transação global.

Drex

Campos Neto também afirmou que o debate sobre tokenização deixou de ser apenas uma hipótese e passou a ocupar espaço nas mesas de reguladores e bancos centrais.

Ele reconheceu que, em 2019 e 2020, esperava um avanço mais acelerado. No entanto, apesar do atraso, agora enxerga um cenário pronto para uma nova fase. “A interseção entre tokenização, Open Finance e inteligência artificial tem um poder enorme, ainda subestimado pelo mercado”, afirmou.

Segundo Campos Neto, essa combinação permitirá criar ativos programáveis, com liquidação em tempo real e contratos digitais sujeitos a condições automáticas. Na prática, isso transformará a forma como produtos financeiros são emitidos, negociados e liquidados.

O ex-presidente do Banco Central destacou ainda que a infraestrutura tecnológica evoluiu. O custo de processamento caiu, a velocidade aumentou e a segurança deu um salto. Isso abre espaço para que a tokenização saia do campo experimental e chegue ao dia a dia das instituições financeiras.

No campo regulatório, ele avalia que o Brasil está bem posicionado. Há espaço para ajustes, mas o país já avançou em pontos essenciais. Além disso, a comunidade de fintechs se consolidou como uma das mais fortes do mundo, atraindo investimentos e criando soluções replicáveis.

Campos Neto comparou o momento com o avanço do Pix e do Open Finance. “Assim como o Brasil virou exemplo em pagamentos instantâneos, também pode ser em tokenização”, disse.

Ele lembrou que a concepção inicial do Drex já se baseava nessa visão. O projeto surgiu como uma ideia de Depósito Tokenizado Organizado, que integraria a segurança do sistema bancário com a flexibilidade do mundo digital.

Transformação no mercado

Um ponto de atenção citado por Campos Neto é a margem atual dos emissores de stablecoins. Eles lucram com o chamado float, ou seja, o dinheiro mantido como lastro. Essa rentabilidade, porém, pode ser reduzida rapidamente se os Estados Unidos avançarem na infraestrutura que permita o uso de ativos com rendimento em transações do dia a dia.

“Se isso acontecer, a emissão de stablecoins sofrerá um impacto direto, porque o float vai cair de forma acelerada”, avaliou.

O ex-presidente do Banco Central afirmou ainda que mais de 99% dos stablecoins são lastreados em dólares. Esse dado reforça a força dos Estados Unidos no cenário global. Os detentores dessas moedas digitais já aparecem entre os maiores compradores de títulos do Tesouro americano, ocupando a quinta ou sexta posição no ranking. O crescimento é tão acelerado que, em breve, os emissores de stablecoins estarão entre os principais detentores de dívida dos EUA.

A expansão dos ativos digitais não traz impacto apenas para os bancos. Ela também representa um desafio direto à política monetária.

Campos Neto explicou que, quando um cidadão retira o dinheiro do banco para colocá-lo em uma carteira digital, ele reduz a base de depósitos e, consequentemente, a capacidade de crédito das instituições financeiras. Esse movimento provoca a desintermediação da função crédito, elemento central do balanço bancário.

Além disso, o uso crescente de stablecoins em países que não eram dolarizados acelera um segundo processo: a dolarização indireta de economias emergentes. Juntos, esses fatores diminuem o espaço de atuação das autoridades monetárias.

“O canal de política monetária funciona através do crédito. Se você tem cada vez menos moeda local como canal de crédito e menos depósitos bancários, a capacidade de fazer política monetária se enfraquece”, afirmou.

A solução: trazer o DeFi para dentro dos bancos

Para Campos Neto, insistir em afastar os ativos digitais é uma estratégia equivocada. “A melhor forma de enfrentar esse processo é fazer o contrário do que os Bancos Centrais têm feito”, disse.

Em vez de tentar expulsar o DeFi do sistema tradicional, os reguladores deveriam criar mecanismos para integrá-lo. Ele defende que, em breve, os bancos terão balanços que incluam ativos digitais como depósitos, permitindo a concessão de crédito sobre eles. Esse modelo é chamado de token deposit.

Segundo o executivo, esse caminho permitirá conciliar inovação tecnológica com estabilidade financeira. Ele prevê que veremos duas camadas funcionando em paralelo: as wallets digitais, que operam sem oferecer crédito, e os bancos tradicionais, que seguem com a função de captar depósitos e emprestar.

A tendência, na visão de Campos Neto, é que essas camadas acabem se aproximando e convergindo no futuro. Essa integração será conduzida pela regulação e pela adoção de modelos como o token deposit.

Economia tokenizada

Ele também destacou que o sistema financeiro global caminha para ser um grande ecossistema tokenizado.

“Estamos saindo de um mundo baseado em contas para entrar em um mundo de tokens”, disse.

Segundo ele, esse movimento tem ligação direta com a fragilidade das moedas tradicionais.

“Não dá para dizer que os governos têm tratado bem as moedas nos últimos tempos. Em várias regiões, inclusive nos Estados Unidos, o nível de dívida soberana está muito elevado. Existe uma percepção crescente de falta de habilidade e condições para convergir essas dívidas”, avaliou.

Diante desse cenário, Campos Neto apontou que cresce a visão de que as moedas convencionais tendem a se enfraquecer. Para ele, há um risco de que sejam usadas apenas como instrumentos de saída, para monetizar dívidas públicas. Esse movimento reforça a necessidade de avançar para um modelo no qual o dinheiro programável e os tokens assumem protagonismo.

“Estamos saindo de um mundo baseado em contas para entrar em um mundo de tokens”, disse.

Outro ponto relevante levantado pelo executivo foi a regulação dos ativos digitais. Ele recordou que os Estados Unidos sempre tiveram protagonismo nesse campo, mas durante muito tempo o ambiente regulatório afastou os bancos tradicionais do setor. Esse distanciamento reduzia a intensidade e o apetite dos investidores.

“Esse quadro começou a mudar, em parte já foi revertido, mas ainda precisamos de novos marcos legais. Depois do Genius Act, será necessária uma lei de infraestrutura, que deve sair em breve. Estive em Washington recentemente para tratar desse tema”, revelou.

Além da regulação, o executivo destacou que a percepção de segurança no mercado vem melhorando. “Temos mais clareza sobre negociação, maior velocidade e mais confiança no processo”, afirmou. Para ele, esses avanços permitem que os ativos digitais passem a cumprir funções que antes eram exclusivas do dinheiro. Hoje, já se nota o uso crescente em remessas internacionais, operações cross-border, garantias e processos fiduciários.

Os ativos digitais ocupam papel central no sistema financeiro

Campos Neto ressaltou que a infraestrutura para suportar esse novo modelo ainda levará tempo para ser totalmente construída, mas o caminho está definido. “Estamos migrando para um sistema financeiro em que os ativos digitais ocupam papel central, tanto em eficiência quanto em confiança”, disse.

Em outro momento, o vice-presidente do Nubank retomou um tema que sempre considerou essencial: a função dos pagamentos no novo sistema. Ele contou que, ainda no Banco Central, questionava constantemente qual era o problema que se buscava resolver.

“Sempre identificamos cinco características desejadas: barateza, rapidez, transparência, segurança e abertura. Essas condições continuam sendo a base do desenvolvimento atual”, observou.

Para ilustrar a evolução, Campos Neto recordou uma apresentação feita em 2019. Nela, incluiu uma pergunta provocativa: qual era o jeito mais rápido de levar um milhão de libras de São Paulo a Londres? “A resposta correta era de avião. O voo levava cerca de 11 horas e era mais eficiente do que qualquer alternativa financeira da época. Hoje, temos rails de pagamento muito mais rápidos e eficientes”, disse.

O executivo reforçou que os custos das transferências internacionais vêm diminuindo e que essa tendência deve continuar. Mas alertou que a indústria de pagamentos, especialmente no âmbito transnacional, será pressionada a buscar diferenciais reais de valor agregado. “As empresas precisarão mostrar onde realmente adicionam valor”, afirmou.

Entre os elementos que considera fundamentais, Campos Neto citou acessibilidade, transparência e programabilidade. Ele destacou que os contratos inteligentes, cada vez mais comuns em operações de atacado, exigem moedas capazes de interagir de forma perfeita com o código.

No entanto, o ponto mais crítico para o futuro, segundo ele, é a transparência, sobretudo no mercado de stablecoins. “É preciso que qualquer ativo digital tenha backing, ou seja, colateral visível e segregado. Se eu tenho um ativo digital como colateral, preciso acessar uma conta e ver esse colateral no meu nome”, explicou.

Ele destacou que algumas jurisdições já caminham nessa direção, mas ainda não existe plena clareza global. Para Campos Neto, quanto mais transparente for o mercado, mais rápido ele vai crescer.

“Muitos investidores olham para a evolução de preços e para a criação de riqueza, mas ainda têm receio por falta de clareza. A transparência reduz esse medo, atrai confiança e faz com que negócios e investimentos prosperem mais rapidamente”, concluiu.