O mercado acompanhou o ataque cibernético que envolveu a FTX, sobretudo a notícia de que aproximadamente 447 milhões de dólares em Ether (ETH) foram drenados da  plataforma – evento que tornou o hacker o 37º maior detentor desse criptoativo do mundo.

Diante da publicidade da blockchain desse criptoativo, empresas de analise on-chain passaram rastrear as transações. Constatou-se que, no dia 20 de novembro, o “endereço” de destino havia transferido 50.000 ETH para um novo (0x866E) e, após, houve a conversão de ETH por renBTC – uma versão de bitcoin compatível com transações da rede Ethereum (ERC-20). Na sequência, o hacker passou a realizar sucessivas transações para diversos “endereços”, descarregando o altíssimo valor que estava concentrado em um único para diversos outros, em quantidades menores.

Esse comportamento foi constatado pela empresa CERTIK e tem sido cunhado por especialistas como uma “técnica de lavagem de dinheiro”. Isso porque, segundo se afirmou, a redução do volume de ativos acumulados em um único “endereço” para diversos outros tornaria o rastreamento na blockchain mais complexo e, consequentemente, facilitaria a conversão desses criptoativos por moeda estatal – também chamado de “fiat off-ramp”. Esse processo de fracionamento é conhecido internacionalmente como uma técnica de lavagem, chamada “peel chain”.

A técnica de “peel chain tem como objetivo evitar a identificação de determinada transação como “arriscada” do ponto de vista de Prevenção de Lavagem de Dinheiro (PLD/AML). Isso porque provedores de serviços de ativos digitais (VASPs) centralizados e que adotam medidas de PLDFT podem entender que determinada transação com um “endereço” que possui uma grande quantidade de ativos necessita de maior atenção – em outras palavras, pode constituir um “red flag. Essa qualidade da transação acabaria exigindo a adoção de maior cautela na sua condução quando comparado a uma com quantidades pequenas de criptoativos.

Apesar de autores internacionais sugerirem que essa técnica – a “peel chain” – é considerada lavagem de dinheiro, não necessariamente ocorrerá o mesmo segundo a legislação brasileira. Isso porque não é qualquer movimentação de dinheiro ilícito que significa, automaticamente, lavagem de dinheiro. Somente ocorrerá com aquelas que tem a capacidade de ocultar ou dissimular alguma das características dos criptoativos com origem ilícita (previstas na Lei de Lavagem de Dinheiro – Lei nº 9.613/98). Isto é, somente será crime se mascarar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de um criptoativo.

Essa diferença de entendimentos decorre do uso, em âmbito internacional, das “fases” da lavagem (“colocação”, “mascaramento” e “integração”) para afirmar se determinada conduta é – ou não – lavagem de dinheiro. Todavia, tal interpretação em nada auxilia na verificação sobre se o comportamento é criminoso no Brasil. Como dito, é necessário que a conduta tenha a capacidade de ocultar ou dissimular alguma das características do ativo. Ou seja, é indispensável que a transferência disponha de uma mínima complexidade para tornar mais difícil a identificação do delito antecedente.

Nesse contexto, fica a seguinte indagação: as transações em “peel chain realizadas pelo hacker da FTX têm a capacidade de ocultar ou dissimular alguma das mencionadas características do renBTC? Entende-se que não.

Para tal conclusão, é importante realizar a separação entre as formas de transação, em duas categorias: a) transações simples; e b) transações complexas. As “transações complexas” são as realizadas com o auxílio de ferramentas que permitem o acréscimo de anonimato, tais como o uso de “serviços de mixagem”, “CoinJoin”, ou outras do gênero. As “transações simples” são todas aquelas que ocorrem sem a utilização dessas ferramentas, isto é, a simples movimentação de criptoativos de um “endereço” a outro. _

Para avaliar as transações em “peel chain”, basta compreender que todas as identificadas são passíveis de consulta pública na blockchain. Tanto que empresas de análise on-chain são capazes de estabelecer, em tempo real, todo o caminho percorrido pelos valores até o presente momento.

Dignifica dizer que as transações de um “endereço” para outro realizadas pelo hacker não podem ser classificadas, no Brasil, como lavagem de dinheiro. Como dito, não houve uma conduta capaz de “ocultar” ou “dissimular” qualquer uma das características do renBTC.

Melhor analisando, tem-se que mesmo após a transação: a) sua “natureza” continuará sendo a mesma, isto é, renBTC; b) sua “origem” e “movimentação” continuarão sendo verificáveis mediante consulta à blockchain; c) a “localização” continuará sendo a mesma, isto é, na blockchain; d) a “propriedade” não será ocultada, visto que sua verificação é possível na blockchain (o indivíduo que possui a “chave privada” correspondente ao “endereço”). Ou seja, não há o preenchimento do que é considerado lavagem de dinheiro segundo a legislação brasileira.

Essa análise tem como objetivo exemplificar a confusão teórica decorrente da pouca discussão sobre se determinadas condutas de movimentação (ou conversão) de capital ilícito envolvendo criptoativos configuram lavagem de dinheiro. Há, como dito, textos nacionais que buscam traçar uma relação com as chamadas “fases” da lavagem – de “colocação”, “mascaramento” e “integração” –, mas poucos fazem a correspondência necessária com o ordenamento jurídico brasileiro.   

Nesse contexto – e com o objetivo de realizar esse confronto –, o livro “Bitcoin e Lavagem de Dinheiro: quando uma transação configura crime” dedicou parte para realizar a análise das condutas envolvendo transações com criptoativos.

Entende-se que tais ponderações sobre o tema têm o objetivo de salientar àqueles que farão a análise típica do delito de lavagem de dinheiro em condutas envolvendo criptoativos quanto à necessidade de ser realizada um estudo aprofundado. As nomenclaturas utilizadas pelos sistemas – como “carteira”, “endereço” ou “moeda” – são, todas, analogias criadas pelos desenvolvedores para tornar mais palatável a compreensão para os usuários. Todavia, pode gerar incompreensões técnicas e que demandam de uma análise mais adequada.

As informações contidas neste texto são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem as posições do Cointelegraph Brasil.