Recentemente, como noticiou o Cointelegraph, o superintendente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Bruno Gomes, anunciou que a autarquia prepara uma nova ofensiva regulatória para ampliar o mercado de tokenização no Brasil.
A iniciativa envolve diversas ações, como a revisão profunda da Lei de Crowdfunding (Resolução CVM nº 88). Além disso, haverá uma revisão da Resolução 135, que aborda as iniciativas do sandbox. Segundo ele, a CVM trabalha em uma versão light da “Resolução 135”.
A autarquia também pediu ao Centro de Regulação e Inovação Aplicada (Cria) um estudo sobre como a blockchain pode ser aplicada nos depositários centrais e mercados de balcão. Atualmente a CVM já opera com blockchain e tokens RWA dentro do sandbox regulatório e, recentemente, aprovou a BEE4 como a primeira empresa de tokenização do país a operar 100% no mercado, fora do ambiente do sandbox.
O uso de blockchain e tokenização pode derrubar intermediários, reconfigurar o papel das depositárias centrais e abrir espaço para empresas menores acessarem o mercado de forma mais barata e ágil.
Mas as perguntas que pairam são: quem vai perder poder nesse processo? Estamos prontos para um mercado descentralizado?
Para falar sobre o assunto, o Cointelegraph Brasil conversou com Keiji Sakai, CEO da águilahub e ex-B3, JP Morgan e Deutsche Bank. Para ele, a discussão vai muito além de eficiência: está em jogo a estrutura inteira do sistema.
Confira a entrevista completa
Objetivos estratégicos da CVM
Cointelegraph Brasil (CTBR): Quais são os objetivos estratégicos da CVM com o estudo sobre tokenização e blockchain em depositárias centrais e mercados balcão?
Keiji Sakai (KS): Na minha visão, embora o CRIA (Centro de Regulação e Inovação Aplicada) tenha sido formalmente criado no final de 2023, essa iniciativa reflete um movimento claro da CVM para se aprofundar nas discussões sobre os impactos de novas tecnologias no mercado de capitais brasileiro.
A autarquia demonstra interesse em entender de que forma tecnologias como blockchain e modelos de tokenização podem:
Aprimorar a eficiência das operações e registros, reduzindo custos e aumentando a velocidade das transações.
Fortalecer a segurança e integridade dos registros, aproveitando a imutabilidade do blockchain para reduzir riscos de fraude.
Ampliar o acesso ao mercado de capitais, permitindo a fragmentação de ativos e, potencialmente, sua democratização.
Na minha opinião, há aqui uma questão estratégica ainda mais relevante: as infraestruturas de mercado financeiro (IMFs), como as centrais depositárias, foram concebidas com base em modelos de bancos de dados centralizados e com responsabilidades fiduciárias claras sobre a custódia e o registro dos ativos.
Já o modelo de ledger distribuído proposto pela blockchain caminha em direção oposta, pois descentraliza registros e potencialmente elimina intermediários.
Acredito que o objetivo estratégico da CVM, ao solicitar esse estudo, seja compreender como essa tecnologia pode impactar funções centrais das IMFs, quais riscos sistêmicos podem emergir de modelos menos centralizados e de que forma a regulação precisaria evoluir para lidar com essas novas arquiteturas tecnológicas sem comprometer a segurança jurídica do mercado.
Vejo também que surgem desafios semelhantes aos que aparecem nas discussões do Drex, como, por exemplo, as questões de privacidade.
Em um ambiente distribuído, garantir a confidencialidade das informações de forma compatível com os requisitos regulatórios e, ao mesmo tempo, manter a transparência necessária do mercado é um ponto complexo, que deve demandar soluções tecnológicas adicionais, novos modelos de governança e clareza regulatória.
Para mim, no fundo, há uma reflexão sobre se a blockchain deve ser vista apenas como ferramenta para ganho de eficiência em processos existentes, ou se poderia ser, de fato, um catalisador de mudanças estruturais no modelo atual do mercado de capitais.
É um movimento que acompanha discussões globais em andamento, como os projetos da DTCC nos EUA, SIX na Suíça e Deutsche Börse na Alemanha, que também estudam como conciliar o conceito de ledger distribuído com a necessidade de um ente central responsável pelos registros e pela confiança do mercado.
Mudança regulatória
CTBR: Quais seriam as atualizações regulatórias mais pertinentes nesse sentido?
KS: Eu não sou especialista em regulação, mas vejo que existem alguns aspectos fundamentais que precisariam ser melhor definidos para permitir uma adoção mais ampla de tecnologias como blockchain e tokenização no mercado de capitais.
Um ponto central, na minha visão, diz respeito às responsabilidades fiduciárias nas transações tokenizadas, seja na emissão, na custódia ou nos registros desses ativos. Hoje, todo o modelo regulatório foi concebido considerando intermediários que assumem esse papel fiduciário, garantindo a integridade, a liquidação e o registro adequado dos ativos.
Historicamente, as atividades centralizadas que conhecemos hoje surgiram justamente para garantir segurança ao sistema. Essa segurança foi, de certa forma, “terceirizada” para entidades privadas, que atuam como custodiantes ou fiéis depositários dos ativos.
No passado, isso envolvia guardar cautelas físicas ou certificados. Com o tempo, esses ativos foram digitalizados, transformando-se em ativos escriturais, mas ainda mantendo o modelo centralizado, no qual uma instituição específica detém a responsabilidade e o controle dos registros.
Atualmente, tecnologias como a blockchain criam a possibilidade de eliminar essas atividades centralizadas, ao permitir que o próprio protocolo tecnológico garanta segurança, imutabilidade e confiabilidade dos registros. Em tese, seria possível obter o mesmo nível – ou até um nível superior – de segurança que existia nos modelos centralizados, mas com custos operacionais muito menores.
No entanto, para que esse modelo se torne viável, é necessário que leis e regulações evoluam.
O arcabouço atual foi criado considerando um mundo centralizado e com intermediários fiduciários bem definidos, e a transição para modelos descentralizados exigirá revisões legislativas e regulatórias, principalmente para garantir segurança jurídica aos participantes e definir claramente quem são os responsáveis em casos de falhas operacionais, fraudes ou disputas de propriedade.
Precisamos realmente de blockchain?
CTBR: Também foi noticiado que a entidade prepara uma consulta sobre modernização das regras de tokenização de ativos mobiliários. Qual a necessidade de modernização nesse caso? Maior facilidade para emissão de dívida em detrimento dos equities?
KS: Neste ponto, minha opinião é um pouco mais crítica.
Vejo que discutimos muito sobre tokenização – seus benefícios operacionais, a possibilidade de adicionar uma camada extra de segurança, transparência e imutabilidade. Mas, para mim, se a tokenização não trouxer benefícios financeiros objetivos, não faz sentido tokenizar.
Por exemplo, por que eu tokenizaria uma CCB, uma debênture, uma ação ou um derivativo se o processo de emissão, registro, distribuição e liquidação continuar exatamente o mesmo? Incluir uma camada de tokenização apenas como componente tecnológico em um processo que já é maduro há anos no mercado brasileiro, sem nenhuma otimização, seria apenas adicionar complexidade e custo, sem contrapartida de valor.
Faria sentido tokenizar se:
Os processos fossem otimizados de forma a gerar redução objetiva de custos operacionais;
A distribuição dos ativos fosse aprimorada, permitindo maior alcance de investidores e, consequentemente, aumento de liquidez no mercado.
Quanto à questão sobre maior facilidade para captação por dívida em detrimento dos equities, acredito que isso independe da tokenização em si, estando muito mais relacionado às condições específicas de cada necessidade de capital das empresas emissoras. Tokenizar, por si só, não torna a captação de dívida mais atrativa do que equity ou vice-versa.
O que percebo é que existem, sim, boas ideias sobre como aproveitar a tokenização para gerar valor real nas negociações de valores mobiliários, seja por meio de redução de custos ou de aumento de liquidez.
Me parece que o objetivo da CVM ao propor consultas públicas, assim como os projetos conduzidos no LAB e nos sandboxes regulatórios, é entender e avaliar essas oportunidades de otimização no mercado de capitais, de modo a eventualmente viabilizar um ambiente regulatório mais aderente à inovação, mas que ao mesmo tempo garanta segurança e confiança aos participantes do mercado.
Novos players no mercado
CTBR: Na iniciativa do lançamento do primeiro sandbox regulatório, que durou até 2024, surgiram empresas como a BEE4, Bolsa de ativos tokenizáveis, que seria uma espécie de “acesso” ao mercado de equity por empresas menores. Você enxerga novas empresas surgindo com novas possíveis regras?
KS: Sim, acredito que é possível surgirem outros modelos utilizando tecnologias inovadoras para atuar no mercado de capitais, especialmente em nichos que hoje ainda não estão totalmente atendidos pelas infraestruturas tradicionais. A tokenização, por exemplo, pode viabilizar modelos de negociação para ativos que têm menor liquidez ou para empresas que não atendem aos requisitos atuais de listagem nas bolsas tradicionais.
Contudo, vejo também algumas limitações importantes, principalmente relacionadas ao uso de tecnologias como blockchain ou DLT em mercados que exigem altíssima liquidez e baixíssima latência.
Por exemplo, na B3, os sistemas de negociação processam milhões de transações por segundo, muito em função da atuação de algotrading (negociação algorítmica) e do uso dos chamados DMA (Direct Market Access).
O DMA, ou Acesso Direto ao Mercado, é um modelo de conexão em que clientes institucionais ou traders profissionais enviam suas ordens diretamente ao sistema eletrônico da bolsa, sem intervenção manual de operadores, garantindo baixíssima latência e alta eficiência operacional. Essa infraestrutura é essencial para estratégias de alta frequência (HFT) e operações com algoritmos de decisão automática.
Atualmente, tecnologias DLT ainda não oferecem esse nível de desempenho e latência, o que as torna inviáveis como solução para sistemas de trading de alta frequência.
Por outro lado, acredito que no mercado de balcão ou OTC, onde os volumes são menores, a liquidez é mais restrita e os processos de registro e liquidação são menos automatizados, a tokenização pode ser a melhor opção, trazendo ganhos importantes de eficiência operacional, redução de custos de reconciliação, maior segurança e potencial de ampliar o acesso a esses ativos por diferentes investidores.
Registro dos ativos
CTBR: Como funciona, do ponto de vista tecnológico, o registro desses ativos?
KS: Antes de explicar o ponto de vista tecnológico, é importante entender o motivo histórico do registro de ativos. Há algumas décadas, os ativos financeiros eram negociados em processos totalmente manuais, utilizando contratos ou cautelas físicas emitidos pelas instituições financeiras.
Além da falta de padronização, o armazenamento e a recuperação desses documentos eram processos onerosos, lentos e sujeitos a falhas ou fraudes, como perda de documentos, falsificações e inconsistências nos registros de propriedade.
Com o passar do tempo, houve uma evolução natural no mercado financeiro: a substituição dos documentos físicos por registros eletrônicos. Essa transformação trouxe maior eficiência ao processo de armazenamento, controle e recuperação das informações, além de reduzir riscos operacionais e custos administrativos.
Contudo, mesmo com a digitalização, ainda era necessário que esses registros ficassem armazenados em bases de dados centralizadas, geridas por instituições reconhecidas pelo mercado e reguladores, para garantir a segurança jurídica das operações. Foi nesse contexto que, em 1984, nasceu a CETIP (Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos Privados), criada inicialmente pelo Banco Central do Brasil, com o objetivo de:
Centralizar o registro, custódia e liquidação dos títulos privados;
Eliminar cautelas físicas, migrando para ativos escriturais eletrônicos;
Reduzir riscos operacionais, fraudes e custos;
Padronizar os processos e aumentar a segurança e eficiência do mercado.
Até hoje, é comum no mercado financeiro brasileiro o uso do termo “cetipar” para descrever o processo de registro de ativos nas registradoras.
Tecnologia
CTBR: E do ponto de vista tecnológico, como funciona?
O processo de registro de ativos ocorre através da carga das informações dos ativos financeiros nos sistemas das IMFs (Infraestruturas do Mercado Financeiro). Existem diferentes mecanismos para isso:
Upload de arquivos estruturados, geralmente no formato definido pelas IMFs;
Digitação manual, para volumes menores ou ajustes pontuais;
Mensageria eletrônica, com integração dos sistemas das instituições financeiras aos sistemas das IMFs, permitindo envio automático de informações.
Contudo, o processo não é real-time. As instituições têm prazos regulatórios para registrar cada operação ou emissão de ativo financeiro, que variam conforme o tipo de instrumento, mas em geral acontecem até D+1 ou em prazos determinados em regulamentação específica.
Na prática, do ponto de vista tecnológico, os registros ficam armazenados em bancos de dados centralizados, com mecanismos robustos de controle de acesso, rastreabilidade, backups e auditoria, garantindo a segurança, integridade e disponibilidade das informações para os participantes autorizados e para os reguladores.
Impacto no mercado
CTBR: Qual seria o impacto potencial dessas novas regras para emissão de dívida e equity e das possíveis mudanças nas centrais depositárias para as empresas?
Como toda grande mudança estrutural, acredito que haveria impactos significativos para diversos entes do ecossistema.
Caso uma tecnologia como blockchain venha a ser autorizada para eliminar a obrigatoriedade de registros em registradoras ou o depósito de ativos em uma central depositária, o impacto para as IMFs (Infraestruturas do Mercado Financeiro) seria muito sério. Essas instituições, que hoje são fundamentais para garantir a segurança jurídica, a custódia e o registro centralizado dos ativos, poderiam ter parte relevante de suas receitas e de suas atividades operacionais substituídas por um modelo tecnológico descentralizado.
Por outro lado, empresas que atuam no mercado de tokens poderiam, enfim, justificar sua receita e modelo de negócios pela eliminação de custos das IMFs. O grande argumento de redução de custos operacionais e maior eficiência passaria a ser efetivamente mensurável, uma vez que hoje, na maioria dos casos, a tokenização ainda convive com a necessidade de registro paralelo em IMFs tradicionais, o que limita seu ganho econômico real.
A distribuição dos ativos continuaria sendo um desafio. Hoje, a Instrução CVM 400 regula as ofertas públicas de valores mobiliários no Brasil, e as distribuições precisam ocorrer por instituições devidamente autorizadas, observando requisitos de transparência e proteção aos investidores.
No entanto, as atuais exchanges de criptoativos, caso se adequem às regulações da CVM e obtenham licenças específicas, poderiam se posicionar como plataformas de distribuição primária ou secundária desses ativos tokenizados, potencializando a liquidez do mercado, especialmente para ativos que atualmente têm circulação restrita.
Além disso, não se pode esquecer o benefício do mercado secundário. A possibilidade de negociação mais ágil e ampla desses ativos em plataformas tokenizadas poderia aumentar a liquidez, reduzir spreads e viabilizar que mais empresas – especialmente as de menor porte ou com emissões menos atraentes aos grandes bancos coordenadores – tenham acesso a investidores e a menores custos de captação.
Em resumo, vejo que os impactos potenciais incluem:
Para as IMFs: risco de perda de relevância em algumas funções centrais e possível necessidade de reinvenção de seus modelos de negócio.
Para empresas de tokenização: consolidação de seus modelos de receita, com ganho real de valor econômico para o mercado.
Para emissores: potencial redução de custos operacionais e maior acesso a investidores.
Para o mercado em geral: possibilidade de aumento de liquidez, mas com desafios regulatórios, principalmente na distribuição primária e na adequação das exchanges de cripto aos requisitos da CVM.
Riscos
CTBR: Quais são os riscos identificados da adoção acelerada de tecnologias financeiras – e como mitigá-los?
KS: Para responder essa pergunta, acredito ser importante observar como os problemas e riscos do mercado financeiro foram sendo resolvidos ao longo dos séculos. Historicamente, sempre que novos problemas ou falhas no sistema foram identificados – seja em processos operacionais, modelos de custódia, governança ou infraestrutura – soluções foram criadas e implementadas, permitindo que o mercado financeiro evoluísse, se tornasse mais robusto e mantivesse sua confiança perante a sociedade.
Vejo que o mesmo padrão se aplica agora, no contexto das inovações tecnológicas aceleradas, como blockchain, tokenização, IA e open finance. Os riscos existem e são inerentes ao processo de inovação. Entre os principais riscos que observo na adoção acelerada de novas tecnologias financeiras estão:
Riscos operacionais e cibernéticos, com potencial amplificado em tecnologias emergentes ainda pouco testadas em larga escala.
Riscos regulatórios e jurídicos, pela ausência de clareza sobre responsabilidades, modelos de governança e enquadramentos legais.
Riscos sistêmicos, caso tecnologias descentralizadas passem a ser utilizadas sem avaliação dos seus impactos na estabilidade do mercado.
Riscos de proteção ao consumidor, especialmente se novos produtos financeiros digitais forem ofertados sem que os investidores compreendam adequadamente seus riscos e funcionamento.
Ao mesmo tempo, acredito que a mitigação desses riscos ocorrerá na mesma velocidade de sua criação, como sempre aconteceu na história do mercado financeiro. À medida que as tecnologias evoluem e amadurecem – como estamos vendo com o blockchain, que chegou a um estágio em que já discutimos a criação de moedas fiduciárias digitais pelos bancos centrais (CBDCs) –, soluções de mitigação também surgirão, seja por meio de:
Novos marcos regulatórios;
Modelos de governança adaptados às tecnologias;
Melhoria dos padrões de segurança cibernética e operacional;
Educação e capacitação do mercado e dos investidores.
Em síntese, os riscos fazem parte do processo de inovação e a resposta para mitigá-los será, como historicamente, a adaptação contínua do mercado, dos reguladores e dos participantes, garantindo que a adoção de novas tecnologias traga mais benefícios do que vulnerabilidades ao sistema financeiro como um todo.