O presidente do conselho da GP Investimentos e da G2D Investments, Fersen Lambranho, escreveu uma coluna para a Folha de S.Paulo defendendo o uso da tecnologia blockchain para o processo democrático brasileiro e dizendo que a tecnologia pode ser a "salvação" da democracia brasileira.

No texto, o empresário diz que acredita que o ano de 2021 terá representado uma ruptura com o velho mundo dos poderes instituídos de forma vertical e opressora, e que a economia agora está estruturada fundamentalmente através de produtos e serviços oferecidos - e muitas vezes desfrutados - online. Após o fim dos períodos de quarentena imposotos pelo coronavírus, um novo ser humano emergiu em versão 2.0. 

Os desdobramentos políticos, econômicos e sociais dessa atualização forçada são imprevisíveis, mas a tecnologia blockchain poderá ser um instrumento decisivo para conceder poder ao povo como "nunca antes" na história, afirma o investidor.

A visão do empresário sobre a tecnologia inaugurada pelo Bitcoin (BTC) a partir do white paper de Satoshi Nakamoto parecem, porém, um pouco distorcidas por um olhar transumanizado - e vertical.

Se o Bitcoin - uma forma de dinheiro digitial ponto a ponto não permissionado e não censurável - pode ser considerado um conceito, a tecnologia blockchain subjacente é a sua aplicação prática - e não o oposto, como afirma Lambranho.

Ele também erra ao tratar da data em que o "texto apócrifo" veio ao mundo. O white paper do Bitcoin foi publicado em 31 de outubro de 2008 publicado em uma lista de discussão de especialistas e entusiastas de criptografiae deixava claras as intenções do seu criador:

"Venho trabalhando em um novo sistema de dinheiro eletrônico totalmente ponto a ponto, sem necessidade da confiança de intermediários. "As principais propriedades: o gasto duplo é evitado com uma rede ponto a ponto. Os participantes podem ser anônimos. Novas moedas são feitas a partir da Prova-de-trabalho no estilo do Hashcash. A Prova-de-trabalho para a geração de novas moedas também sustenta a rede para evitar gastos duplos".

Seja quem for o responsável pelo documento, ele estava endereçando um problema objetivo e real - e não projetando uma tecnologia para desenvolvimento de produtos em série. Dificilmente imaginaria que sua proposta resultaria em mais de 17.000 criptomoedas em circulação pouco mais de dez anos depois.

A grande maioria delas sem utilidade prática ou benefício real para os usuários. Ou seja, o número em si, por superlativo que seja, não representa nada, ao contrário do que Lambranho faz parecer.

Ele também diz que hoje 7,5% dessas moedas estejam nas mãos de investidores institucionais e governos, o que também não é um dado necessariamente bom ou mal. Depende do ponto de vista. Por exemplo, alguém que acredita ou deseja que a tecnologia blockchain pode conceder poder ao povo deveria se preocupar com o aumento da concentração de criptomoedas nas mãos dos atuais detentores do poder político e econômico.

Em um primeiro momento, o vale tudo é parte inerente da inovação, depois as leis devem ser criadas, defende o financista. A questão, completa ele, seria a quem caberá criá-las, mas isso não fica claro. Em seguida, explica que a terceira onda da internet está em desenvolvimento tendo como fundamentos os princípios tecnológicos da tecnologia blockchain.

Depois de criticar as big techs como Google e Facebook, simplificando as formas sutis de controle e dominação que elas exercem sobre os seus usuários, sem nem sequer mecionar as implicações políticas e econômicas, Lambranho se aventura na caracterização desta nova internet na qual "a governança passa a ser dos usuários e colaboradores dos algoritmos que, por serem códigos abertos, viabilizarão o sonho cantado em 1971 por John Lennon: 'Power to the People', sem se aprofundar nos mecânismos de governança ou na lógica econômica de distribuição de valores.

Em seguida, ele celebra dois casos marcantes nos mercados financeiros em 2021: primeiramente, o caso GameStop, ao qual apresenta como um movimento de "sardinhas" organizadas em torno do que supostamente consideravam um bom negócio - as ações da loja de videogames GameStop. Na verdade, um grupo de usuários no Reddit resolveu "pregar uma peça" no mercado financeiro em janeiro de 2021 ao comprar uma ação "podre", fazendo com que ela se valorizasse rapidamente e derrubasse os donos das opções vendidas da GameStop.

Um olhar apressado pode concluir que os peixes pequenos derrotaram os tubarões, mas não sem que pequenos investidores também saíssem prejudicados, mais até talvez que os gestores de fundos que foram "chorar na CVM americana".

O segundo caso apresenta uma versão ainda mais romântica, fantasiosa e distoricida de fatos de um acontecimento verdadeiramente marcante, mas cujo principal siginificado está oculto nas palavras de Lambranho.

Trata-se do Constitution DAO, o qual foi reduzido a um "grupo de crowdfunding utilizando blockchain na chamada DAO" que se reuniu para comprarm o "maior símbolo da democracia ocidental" e. Lambranho retrata o evento como a primeira vez que o povo entrou na casa de leilão Sotheby's, desbancando bilionários e colecionadores.

Na verdade, o Constitution DAO conseguiu mobilizar 17.000 pessoas e arrecadar aproximadamente US$ 45 milhões de dólares em menos de duas semanas para comprar um exemplar antigo da Constituição dos EUA em um leilão na tradicional casa londrina Sotheby's. Por muito pouco acabou não conseguindo arrematar a peça. O comprador foi o CEO da Citadel e avesso às criptomoedas Kenneth Griffin.

No entanto, mais do que uma mobilização de crowdfunding em torno de uma blockchain, o Constitution DAO chamou atenção para uma nova forma de organização coletiva, autônoma e descentralizada capaz de rivalizar com grandes corporações e fundos de capital de risco para financiar e viabilizar projetos de interesse comum entre pessoas desconhecidas baseadas em qualquer lugar do mundo.

Por fim, Lambranho propõe um novo pacto nacional unindo agentes econômicos para "resolver o problema da pobreza e da exclusão da nossa massa de 220 milhões de cérebros" através da tecnologia.

Como se a revolução da Web3 já não estivesse em pleno andamento e não demandasse anos de educação, planejamento, investimento e vontade política para que os primeiros resultados possam vir à luz em um país tomado por um obscurantismo institucional.

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