No último 10 de março, o MIT Technology Review publicou um artigo com o título ''O erro de Satoshi'', do autor Christian Aranha, afirmando que o criador do Bitcoin ''errou e o futuro de sua criação não deverá ser o que ele previu''.
''Erros'' do Satoshi são um assunto que despertam minha atenção porque sempre que penso que encontrei algo parecido com um 'erro' do sublime criador do Bitcoin, descubro que quem errou fui eu.
Pequeno exemplo: no início de 2020, refletindo sobre a importância do halving que se aproximava, pensei, ''com o tempo, a importância do halving deve diminuir, já que o número de Bitcoins é cada vez menos expressivo. O ciclo de alta pós halving se manteve e no início de fevereiro de 2021, os mineradores de BTC ganharam US$ 4 milhões em 60 minutos, a maior receita na história do Bitcoin.
O exemplo acima é apenas uma das (várias) vezes em que descobri que os 'erros' do melhor ativo da última década, eram apenas erros da minha própria compreensão.
Até hoje, eu não encontrei nada que se sustentasse com um erro de Satoshi. E por isso, sigo adorando explorar e rebater os erros apontados.
Contra-pontos do 'erro' de Satoshi apontado no artigo do MIT
O erro apontado pelo autor diz respeito ao uso do Bitcoin como dinheiro. Nas palavras de Aranha:
''Está cada vez mais claro e consolidado na academia e no mercado que o Bitcoin não será um dinheiro do tipo cash, o dinheiro do bolso, o de pagamento. Hoje sabemos que ele é lento e caro demais para isso. Não adianta tentar fazer emendas, novas propostas de mudanças ou puxadinhos, isso não vai mudar. ''
Vamos então, como bons estripadores (de ideias), por partes.
'Bitcoin não será dinheiro, ele falhou como meio de pagamento.
O dinheiro é um instrumento humano multifacetado que permeia, além de todas as sociedades, praticamente todas as socializações. As transações econômicas são usadas para diversos fins e assumem diversas formas. Se conchas, wampum e animais já foram usados como dinheiro, por que o Bitcoin não seria?
Trilema de Escalabilidade
O custo de transferência do Bitcoin (fees) e seu baixo limite é o custo da segurança descentralizada e da imutabilidade da rede. O limite da capacidade dos blocos de 1MB (4MB com SegWit) e 7 transações por segundo (TPS) possibilita a validação distribuída das transações.
Blocos maiores, favorecem grandes mineradores e a centralização da rede, por limitar os participantes da rede. O Bitcoin, lidando com o Trilema da Escalabilidade, priorizou a imutabilidade, segurança e descentralização ao invés da compra de um café.
Enquanto o Bitcoin permite apenas 7 TPS, a VISA é capaz de processar até 2.000 TPS. Isso ocorre porque o desempenho é alcançado sacrificando outros aspectos importantes da rede. A questão não é apenas escalar a rede, mas escalar de forma descentralizada.
As necessidades do Homo Economicus Moderno pode começar em ''comprar um cafezinho'', mas ela não está restrita aos grãos torrados. Dizer que o Bitcoin não é dinheiro porque ele (hoje) não é bom para comprar um café, é limitar a abrangência das necessidades humanos no que diz respeito às transações econômicas.
Apesar do baixo limite em termos de TPS, quando falamos de transacionar altos valores ou entre países, além de seguro, descentralizado e deflacionário, o Bitcoin já é mais barato e rápido do que os serviços tradicionais (e às vezes a única opção).
Transações bilionárias de Bitcoin são feitas custando menos de $5 dólares. Os mesmos $5 dólares podem ser usados para transferências internacionais, que de acordo com o Banco Mundial, tem um custo médio global de US$ 200 e demoram dias.
Podemos 'piorar' a situação se considerarmos as limitações dos países que enfrentam controles de capital, jurisdições que bloqueiam pagamentos para outras regiões, sofrem com sanções econômicas, lutam com altos níveis de inflação ou executam traders que realizam transações internacionais.
Dinâmica da movimentação do dinheiro na economia
Em março de 2020, o coronavírus causou uma reestruturação na economia do mundo e uma reestruturação na velocidade monetária do dinheiro em circulação na economia. Tanto a oferta monetária M1 (o dinheiro mantido para despesas de curto prazo), quanto M2 (economias de longo prazo) caíram drasticamente. M1 e M2 representa a taxa na qual os consumidores e empresas em uma economia gastam dinheiro.
Há mais dólares americanos do que nunca, com as emissões trilionárias, mas a taxa com que esse dinheiro se move na economia, nunca foi tão baixa. Impressão recorde, colapso na velocidade da oferta monetária e a velocidade monetária do Bitcoin superior à do dólar.
Fonte: Woobull
O exemplo acima mostra como dinâmicas sócio-políticas podem modificar os critérios que definem o que é um bom dinheiro e o que fazer com o dinheiro. Em um cenário de repressão política, economia, contenção de gastos, inflação, um ativo como o bitcoin talvez seja bom como dinheiro.
Residentes da Venezuela, Nigéria, Rússia e terras pós-soviéticas podem preferir pagar fees em poucas transações resistente à censura do que esperar que a moeda fiduciária 'boa para comprar um cafezinho no Starbucks' perca todo seu valor.
Mas, quanto custa de fato e quanto demora uma transação de Bitcoin?
''Hoje sabemos que ele é lento e caro demais''
O custo e a velocidade de uma transação de Bitcoin é flexível de acordo com diversos fatores. Para escrever esse artigo, eu fiz alguns testes para demonstrar tal 'flexibilidade'. Eu testei o envio de 0.002 BTC nas exchanges Binance, Freewallet e na carteira Exodus.
Binance = 0.0005 / $28/ R$158
Freewallet = 0.00052548/ $30/ R$169 (baixa) - 0.00078822 BTC / $45 / R$ 254(normal)
Exodus = 0.00004 BTC /$2/ R$ 11 (baixa) - 0.00014007/ $8 / R$ 45 (alta)
A transação da Exodus com a menor fee permitida demorou cerca de 2h30 para ser confirmada.
A movimentação da mesma quantia de bitcoin poderia custar R$11 ou R$254.
As exchanges às vezes não permitem que os usuários escolham a prioridade de sua transação ou apenas ofereçam ‘alta-baixa', enquanto isso, as carteiras permitem grande flexibilidade. Mas os maiores valores das carteiras não chegavam nem perto dos menores valores das exchanges. Talvez aqui, o ‘caro demais’ seja (novamente) um problema com intermediários.
Os dados abaixo mostram a dinâmica da rede em termos de número de transações em cada range de fee.
Fonte: bitcoinfees.net
Fees muito baixas e transações rejeitadas
Transações com taxas altas são confirmadas com rapidez, mas mesmo as taxas baixas (atualmente até 11 sat/byte) tendem a ser confirmadas. Mas, se o usuário escolher uma taxa muito baixa, os mineradores podem rejeitá-la. Se a transação 'travar’, ela pode ser acelerada ou substituída pelas seguintes opções:
Opt-In Replace-By-Fee (Opt-In RBF): reenvio da mesma transação, mas com uma taxa mais alta (disponível na Electrum e GreenAddress)
Bitcoin Child Pays For Parent (CPFP) técnica que desfaz a transação travada, fazendo uma nova transação com taxas mais altas (transação filho) usando os resultados da transação anterior (transação pai) que está travada.
Bitcoin Transaction Accelerator: o pool de mineração ViaBTC oferece um “acelerador de transação”.
Não tenha medo de escolher taxas baixas, transações rejeitas não são registradas na blockchain e voltam para o remetente de onde o envio foi feito.
Não adianta tentar fazer puxadinhos
''Não adianta tentar fazer emendas, novas propostas de mudanças ou puxadinhos, isso não vai mudar.'' - Aranha
Os protocolos fazem concessões entre escalabilidade, segurança e descentralização. E mesmo considerando serviços p2p, $2 por transação pode ser caro. Por isso, os puxadinhos fora da cadeia podem (sim) ajudar no problema, aumentando a escalabilidade , enquanto a segurança e a descentralização são mantidas na cadeia principal.
Durante os primeiros anos do Bitcoin, os mineradores tinham muito espaço livre em seus blocos e aceitavam transações com taxas de 0,1 mBTC ou mesmo transações sem taxa. Com o aumento do preço do ativo, o número de transações aumentou e a situação mudou. À medida que as transações começaram a pipocar na rede, os mineradores passaram a priorizar as transações com as maiores fees, dando início ao problema da escalabilidade.
Durante a alta de 2017, o Bitcoin Cash tentou resolver o problema da escalabilidade aumentando o tamanho do bloco, o que ficou conhecido como ‘’guerra do hashrate’’ e piorou a crise de escalabilidade: a rede congestionou e as fees chegaram a US$ 60 dólares.
Como grande parte da rede e dos desenvolvedores não concordam com a solução do aumento do bloco, outros puxadinhos tentaram resolver o problema da escalabilidade no Bitcoin: os mais famosos são a SegWit, as soluções de dimensionamento fora da cadeia, como Lighting Network e as sidechains, tal como a Liquid. Há também uma solução on-chain agnóstica ainda pouco conhecida, mas que pode ser interessante chamada bloXroute.
SegWit
O SegWit é a implementação do BIP141 que reorganiza e torna mais inteligente a forma como os dados usados para verificar as transações são armazenados. A SegWit separa a assinatura digital da árvore de Merkle, otimizando o algoritmo das transações e tornando possível a adição de mais transações por bloco.
Como mais transações são adicionadas, a velocidade geral das transações também sobe. Com essa engenharia, o SegWit permite um aumento efetivo do tamanho dos blocos para 4 MB, mesmo que seu tamanho real continue sendo 1 MB.
O SegWit foi implementado em 2017 como um softfork e o crescimento da sua adoção coincide com a queda brusca do valor das fees.
Fonte: charts.woobull.com/bitcoin-segwit-adoption/
Lightning Network: quanto custa beber um cafezinho no puxadinho?
A Lightning Network (LN) é um protocolo de segunda camada formado por uma rede de canais de pagamento interconectados. Na LN, um canal é aberto entre participantes que depositam alguma quantia no protocolo. Nesse canal, os usuários podem transacionar (sem ultrapassar o valor depositado) de forma instantânea e gratuita. Assim, as transações são registradas e processadas fora do blockchain do Bitcoin.
Basicamente, é uma estrutura inteligente de canais de pagamento P2P que podem trocar satoshis diretamente entre si, sem envolver um minerador. Quando o canal é fechado, o saldo de cada um dos usuários é publicado na blockchain do Bitcoin.
Os usuários podem ter realizado centenas de transações na LN, mas eles apenas vão registrar na cadeia principal sua transação de entrada e de realocação dos saldos. Dessa forma, a blockchain principal é ‘’desonerada’’ das transações via LN e é possível fazer milhares de transações por segundo de forma instantânea.
Taxas da Lightning Network (LN)
Além da fee paga para abrir/fechar o canal, há duas taxas da LN, que funcionam contra spam da rede: a Base Fee e a Free Rate.
A Base Fee é uma taxa fixa de 1 sat (~$0.000588121), cobrada cada vez que um pagamento é encaminhado através do canal. A Free Rate é uma taxa percentual cobrada sobre o valor do pagamento. Observando a Free Rate dos últimos nós, vemos que o mais caro cobra 0.0005 sat.
Considerando que você vá transferir 2.000 sats ($1,18) / um cafezinho de R$ 6,50 :
Custo LN= 1 sat (Taxa Base) + 2.000 x 0,0005 sats (Taxa de Taxa) = 2 sats como taxa ($0,0012). Ou seja, gratuíto e você pode aproveitar sua cafeína em paz.
Atualmente, há mais de US$ 75 milhões circulando nos canais da LN e seu número de nós, canais e capacidade tem aumentado exponencialmente.
Fonte: defipulse.com/lightning-network
Aos interessados, carteiras integradas com a LN:
Electrum, Zap, LND Thin, Shango, Spark, Éclair
Sidechains: Liquid
Sidechains são blockchain conectados à uma cadeia principal de forma interoperacional. Como a sidechain funciona através de diferentes nós e mecanismos de validação, ela pode aumentar sua escalabilidade de forma independente. Além disso, a sidechain pode adicionar diferentes features e ampliar as possibilidades da rede principal.
Utilizando uma sidechain, os usuários podem realizar centenas de transações e ao sair, registrar (e pagar) apenas pelas transações de entrada e saída para a cadeia principal.
Uma das sidechains mais importantes do Bitcoin é a Liquid. Quando um usuário entra na Liquid, ele recebe um L-BTC, um token pareado em 1:1 no Bitcoin e pode realizar diversos traders e transações sem pagar pelas fees de mineração.
Conclusão: 'valor’ para a comunidade e a Lei de Gresham
O artigo não teria me incomodado se ele tivesse afirmado; ‘Hoje, o Bitcoin não funciona como meio de pagamento para pequenas transações cotidianas’'.
Mas, além de ignorar a evolução das soluções de escalabilidade que já facilitam os micro-pagamentos e tornam o Bitcoin utilizável no mundo real, o artigo parece ignorar que o Bitcoin, assim como qualquer dinheiro, é uma abstração social, e diferente da abstração fiduciária, o Bitcoin é uma tecnologia que pode ser sempre melhorada.
A Lei de Gresham dita que o dinheiro bom é guardado e o bom, usado. Se o bitcoin é dinheiro "bom", as pessoas são mais propensas a mantê-lo e usar outros ativos com menor valor potencial. Se o bitcoin é visto e valorizado como uma reserva de valor, ele não será gasto e as soluções para ‘’cafezinho’’ serão menos requisitadas do que, por exemplo, implementações de privacidade.
Em 8 de setembro de 2010, ao debater a questão do limite dos blocos, Satoshi escreve:
‘’O limite pode ser facilmente alterado no futuro. Podemos decidir aumentá-lo quando chegar a hora. É uma boa ideia mantê-lo baixo como um disjuntor e aumentá-lo conforme necessário. Se atingirmos o limite agora, quase certamente será algum tipo de flood e não o uso real. Manter o limite mais baixo ajudaria a limitar a quantidade de espaço em disco desperdiçado nesse evento.’’
Com o aumento da adoção, aprenderemos mais sobre o que os usuários de hoje e de amanhã irão valorizar e isso definirá se o Bitcoin deve ou não ser priorizado como meio de troca para ‘comprar um cafezinho'.
Felizmente, seja qual for a narrativa adotada, o Bitcoin enquanto protocolo e soluções paralelas continuarão a evoluir. Talvez a cadeia principal só seja usada para liquidar transações de alto valor ou para conectar / sair de cadeias laterais e abrir / fechar canais. Talvez soluções on-chain surjam. Não importa realmente.
Enquanto o Bitcoin for imutável, descentralizado e permitir transações sem intermediários em todos os lugares, de forma resistente a censura, Satoshi não errou.
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