A disputa pelo futuro do dinheiro digital já está em curso, mas, ao contrário da narrativa de “vencedores e vencidos”, a fundadora da plataforma de liquidez MANSA, Nkiru Uwaje, acredita que o caminho mais provável é a interconexão entre sistemas privados e públicos, ancorados em padrões técnicos comuns e confiança do usuário.
Em entrevista exclusiva ao Cointelegraph Brasil, Uwaje analisou o papel das stablecoins, criticou o excesso de controle estatal nas CBDCs e detalhou como sua empresa permite liquidações instantâneas em dólar tokenizado na América Latina, com impactos práticos que vão desde freelancers em El Salvador até a indústria automotiva no México.
Segundo Uwaje, países como o Brasil enfrentam um dilema: regular as stablecoins como moedas estrangeiras, como quer o Banco Central, ou integrá-las ao sistema financeiro com regras específicas.
“O Brasil quer proteger o controle cambial e a soberania de dados, mas classificar stablecoin como operação de câmbio cria silos e complexidade operacional para empresas”, afirma.
Além disso, enquanto muita gente ainda associa stablecoins à especulação, Uwaje argumenta que os usos reais já são visíveis na América Latina. Freelancers salvadorenhos recebem em USDT com taxas inferiores a 1%, e empresas mexicanas liquidam compras internacionais no mesmo dia com linhas de crédito tokenizadas.
“O desafio não é emitir o token, é conectar blockchains fragmentadas, modelos de custódia e bancos parceiros por meio de uma API única”, diz.
Pix é sucesso, mas stablecoin vai além
Uwaje elogia o Pix, que bateu recorde de 252 milhões de transações em um único dia em 2024, mas destaca que o sistema é essencialmente doméstico. “Stablecoins funcionam como uma camada internacional acima do Pix. Um brasileiro pode vender algo em USDT e receber em reais via Pix, enquanto o comprador na Colômbia paga com pesos.”
Para ela, o segredo é não substituir sistemas locais, mas integrá-los por meio de carteiras e padrões de mensagem compatíveis. “Nenhum país precisa reconstruir o Pix, só precisa conversar com outras redes.”
Sobre críticas à centralização, seja nas CBDCs ou nas stablecoins, Uwaje defende governança em camadas, com mecanismos como:
chaves de congelamento públicas e auditáveis,
temporizadores programáveis que desbloqueiam fundos após decisões judiciais expirarem, e
sistemas multisig com entidades reguladas co-assinando bloqueios.
Ela cita a Circle como exemplo de arquitetura já compatível com esses princípios e destaca o padrão ISO 24165, que atribui identificadores digitais únicos aos tokens. “Isso permite que reguladores imponham regras locais sem comprometer a consistência global.”
O futuro é interoperável e confiável
Para Nkiru Uwaje, o sucesso das moedas digitais não depende de quem controla a infraestrutura, mas de quais sistemas oferecem liquidez, transparência e confiança ao usuário. Em um mundo polarizado, cercado por desinformação e disputas geopolíticas, a interoperabilidade será o verdadeiro diferencial sistêmico.
“A prioridade deve ser gerar valor real, e garantir que pessoas e empresas tenham paridade ao operar na economia global, com segurança e simplicidade”, afirma.
Confira a entrevista completa.
Stablecoins vão salvar o dólar?
Cointelegraph Brasil (CTBR): Trump tem defendido as stablecoins como uma forma de "salvar" o dólar como moeda global, diante de várias iniciativas de comércio multilateral que não usam a moeda americana. Como você vê isso, e como acha que outras nações reagirão a essa expansão "política"?
Nkiru Uwaje (NU): Quando Donald Trump apresenta as stablecoins como uma forma de “salvar” o dólar, ele reconhece que os tokens atrelados ao dólar colocam uma versão sintética da moeda americana em qualquer smartphone, mesmo em mercados com acesso fraco a bancos correspondentes. Em vez de lançar dúvidas sobre emissores privados, a questão é garantir que eles operem com regras claras.
É isso que os projetos de lei GENIUS e STABLE, atualmente em análise no Congresso, propõem: exigências de reservas, auditorias e licenciamento, para que o mercado possa ampliar a liquidez em dólar enquanto a gestão monetária permanece sob controle público. Juntos, GENIUS e STABLE exigiriam reservas 1:1, atestados mensais e proibição de stablecoins com rendimento, preenchendo a lacuna atual de transparência.
Espere duas reações contrárias. Primeiro, tokens regionais ou lastreados em commodities (como o futuro stablecoin em pesos mexicanos da Bitso) vão ancorar o valor localmente e reduzir a dependência do dólar.
Segundo, blocos liderados por Estados, como os pilotos do Yuan Digital da China, que já combinam projetos de infraestrutura da Nova Rota da Seda com sistemas de liquidação na África, oferecerão uma alternativa completa que ignora totalmente o dólar. Para o MANSA, a resposta pragmática é construir canais de liquidez que conectem dólares, moedas regionais e tokens de commodities, promovendo a interoperabilidade necessária.
Stablecoins como câmbio no Brasil
CTBR: Na Europa, temos o MiCA, e também cresce o interesse regulatório por stablecoins. No Brasil, o Banco Central quer regulamentar stablecoins como operações de câmbio. Como isso representa um desafio para empresas e emissores de stablecoins, e como isso pode beneficiar o setor?
NU: Os desenvolvedores preferem clareza rigorosa a uma ambiguidade benevolente. O MiCA cria um regime de passaporte regulatório, regras de auditoria e exigências de capital para emissores, elevando o padrão, mas liberando o acesso a parceiros bancários da UE que antes estavam à margem.
Já o Banco Central do Brasil propõe classificar as stablecoins como operações de câmbio — uma abordagem voltada a proteger os controles cambiais e a soberania de dados locais. O diretor de regulação Renato Gomes alerta que 90% dos fluxos de entrada de criptoativos no Brasil estão ligados a stablecoins, justificando essa postura mais conservadora.
O resultado é um cenário de “mesma tecnologia, perímetros diferentes”, no qual as empresas precisam modularizar suas estruturas de conformidade e diversificar os parceiros de liquidez em cada jurisdição. No entanto, uma vez que as regras forem codificadas, o custo de capital tende a cair, pois o risco se torna mensurável.
Devemos tomar cuidado para não copiar cegamente as proteções do sistema fiduciário para o mundo das stablecoins, pois isso pode impor restrições adicionais e dificultar o acesso a moedas essenciais para o dia a dia dos consumidores, especialmente nos mercados emergentes.
Stablecoins vão ‘matar’ o sistema financeiro tradicional?
CTBR: Você acredita que o aumento da adoção de stablecoins na América Latina pode provocar uma mudança estrutural no sistema financeiro tradicional? Quais seriam os impactos dessa transformação?
NU: A América Latina já ocupa a segunda posição no mundo em crescimento no uso de stablecoins, em termos de valor transacionado on-chain. O USDT domina os mercados de remessas, e-commerce e proteção cambial, de Argentina a México.
Mas a mudança mais profunda ocorre nas tesourarias corporativas: uma empresa colombiana de software pode usar a linha de crédito em USDT da MANSA para pagar uma rede de anúncios no Brasil no mesmo dia e receber pesos no dia seguinte — sem precisar de conta nostro. Esse tipo de transformação no fluxo de trabalho, e não a substituição dos bancos, é o que silenciosamente reconfigura o sistema tradicional.
Acredito que a adoção de stablecoins é um catalisador importante para a inclusão financeira e para a democratização do acesso ao mercado, e fico animado em ver a América Latina liderando esse movimento.
CTBR: Os EUA têm adotado soluções “corporativas” no mercado digital, como stablecoins em vez de moedas digitais de banco central (CBDCs), e tokenização via empresas (como a BlackRock) em vez de uma CBDC atacadista como o Drex no Brasil. Isso pode enfraquecer o papel do governo na política digital ou é apenas um caminho “natural” da economia americana?
NU: O instinto americano é permitir que o mercado inove, enquanto o Estado supervisiona e dá respaldo. O fundo tokenizado de títulos do Tesouro da BlackRock, agora aceito como colateral em mercados DeFi, mostra como trilhas privadas podem crescer rapidamente dentro das leis atuais de valores mobiliários.
A liquidação, em maio de 2025, do primeiro título tokenizado do Tesouro dos EUA na rede pública da Ethereum via JPMorgan (Onyx) reforça que grandes instituições veem redes abertas como complementares, e não como concorrentes, aos bancos centrais. Longe de enfraquecer a autoridade pública, essa delegação permite que o Fed atue como emprestador de última instância, sem precisar se envolver nas operações tecnológicas do dia a dia.
Falta de APIs prejudica o mercado
CTBR: Quais foram os principais obstáculos tecnológicos na criação de uma plataforma de liquidez nativa em stablecoins, e como sua experiência anterior na Dell Technologies e na SWIFT ajudou a superá-los?
NU: O maior desafio nunca foi emitir tokens, mas sim conectar blockchains fragmentadas, modelos de custódia e bancos parceiros por meio de uma única API. Meu tempo na Dell Technologies me ensinou a lidar com a heterogeneidade do hardware e a focar em interoperabilidade.
Já na SWIFT, aprendi a importância das infraestruturas de mercado e aprofundei o entendimento sobre a complexidade dos serviços financeiros. Hoje, a MANSA aplica essas lições com uma plataforma robusta de liquidez que oferece às empresas de pagamentos o poder operacional necessário para escalar transações e permitir liquidações em tempo real.
No setor como um todo, a falta de APIs padronizadas e de interoperabilidade ainda aprisiona a liquidez em silos isolados — um problema que iniciativas como a Universal Digital Payments Network (UDPN) querem resolver. Lançada em Davos em 2023, a UDPN já testa swaps de stablecoins reguladas entre 12 bancos.
CTBR: Ainda não está claro como a China irá se posicionar nessa transformação da economia digital. O que temos visto é uma agenda política pró-Yuan Digital, apoiada por investimentos pesados em infraestrutura básica. Você acredita que a China pode se tornar o principal “inimigo” das stablecoins atreladas ao dólar, ou isso é apenas mais um capítulo de um velho jogo político no campo digital?
NU: O modelo de Pequim é baseado em infraestrutura: exporta fibra, 5G ou ferrovias e embute os trilhos do e-RMB (Yuan Digital), como no financiamento antecipado à exportação de cobre na Zâmbia em Yuan Digital. Essa abordagem atrai parceiros comerciais que valorizam projetos financiados por fornecedores mais do que ideais de código aberto.
Em vez de enxergar uma disputa binária entre dinheiro “livre de mercado” e “controlado pelo Estado”, o mais provável é surgirmos com um modelo tripolar: moedas lastreadas em USD, moedas lastreadas em CNY (yuan) e híbridos regionais — todos conectados por pontes neutras. Para os exportadores africanos, essa diversificação de trilhos é uma oportunidade, não uma ameaça: ela amplia rotas comerciais e mercados possíveis.
Stablecoins no dia a dia
CTBR: Muito se fala sobre a aplicação das stablecoins no contexto DeFi. Que casos de uso práticos você tem observado na América Latina que vão além da especulação?
NU: As aplicações no mundo real já são visíveis. Pesquisas com plataformas de freelancers mostram spreads de pagamento em cripto abaixo de 2%, contra 6% a 10% em gigantes de remessas. Por exemplo, freelancers em El Salvador aceitam USDT e convertem para moeda local com spreads abaixo de 1%.
Fabricantes de autopeças no México usam as linhas de crédito em USDT da MANSA para pagar fornecedores asiáticos no mesmo dia, eliminando a espera de dois dias típica das transferências via SWIFT. O experimento de títulos tokenizados do JPMorgan mostra como a liquidez intradiária pode ser colateralizada diretamente em blockchain, com stablecoins fornecendo o capital de giro.
CTBR: As stablecoins oferecem transações baratas, instantâneas e sem fronteiras. No entanto, aqui no Brasil, vimos uma incrível expansão internacional impulsionada pelos usuários do Pix, que já está em vários países da América Latina, Europa e até nos EUA. Precisamos mesmo de stablecoins, ou sistemas centralizados como o Pix podem ser uma alternativa estatal sem a necessidade de uma CBDC?
NU: O Pix é um triunfo da inclusão doméstica. Ele movimentou 6 bilhões de transferências por mês no 4º trimestre de 2024, e bateu um recorde de 252 milhões em um único dia, em 20 de novembro de 2024. Seu diferencial, no entanto, está no alcance local e não na conversão internacional.
As stablecoins funcionam como uma camada internacional acima do Pix: um comerciante brasileiro pode precificar produtos em USDT e receber em reais via Pix, enquanto um comprador colombiano financia a transação com USDT lastreado em pesos colombianos. Nenhum país precisa “reconstruir o Pix”; eles só precisam de carteiras compatíveis com as duas redes.
O futuro será interconectado e não dominado por um sistema
CTBR: Duas das principais críticas às CBDCs são a centralização e o fato de que o governo pode bloquear seus ativos. No entanto, vemos que isso também acontece com stablecoins. Por exemplo, a Tether frequentemente anuncia bloqueios de ativos, mostrando que 1) stablecoins têm um "dono" e 2) sim, esse dono pode bloquear seus fundos. Como então garantir a proteção dos interesses dos usuários em cada país? Com uma regulação global ou múltiplas regras regionais como temos visto até agora?
NU: Proteger os usuários exige uma governança em camadas. Isso inclui:
Atestados públicos transparentes sobre as chaves de congelamento,
Temporizadores programáveis de expiração que liberam fundos após o fim de uma ordem judicial,
Vetos multisig, nos quais uma parte regulada e independente precisa co-assinar qualquer bloqueio.
Esse modelo dilui o controle unilateral sem impedir a conformidade legal. A própria política de riscos da Circle já esboçou essa arquitetura. Além disso, o padrão ISO 24165 (Digital Token Identifier) fornece a “infraestrutura neutra” que faltava: ele atribui um identificador digital a cada token e cria uma linguagem comum entre reguladores. Isso permite que autoridades locais imponham regras nacionais, enquanto o restante do ecossistema mantém consistência global — assim como o PCI-DSS padronizou a segurança de dados em cartões.
CTBR: Stablecoins, CBDCs, sistemas como o Pix... China, EUA, Europa... Como será o futuro do dinheiro digital em um mundo cada vez mais politicamente polarizado e cercado por disputas internas, infladas por fake news e pelo poder das big techs?
NU: Espere um mosaico no qual stablecoins privadas, CBDCs e redes de pagamentos instantâneos se conectam por meio de padrões compartilhados de mensagens e colateral. Os vencedores serão aqueles sistemas que combinam alta liquidez, reservas transparentes e confiança do usuário — qualidades essenciais em uma era de desinformação amplificada pelas grandes plataformas de tecnologia.
A interoperabilidade será essencial, e a liquidez e a transparência definirão quais modelos se tornarão realmente sistêmicos. Nosso foco deve continuar em gerar valor e garantir que pessoas e empresas tenham igualdade de condições para operar na economia global, com segurança e facilidade.