Resumo da notícia
BC exige até R$15 milhões de capital mínimo para exchanges.
Transferências e saques em cripto podem virar operações de câmbio.
Especialistas alertam para risco de concentração e cobrança de IOF.
O mercado cripto brasileiro entrou em alerta após a divulgação do novo pacote regulatório do Banco Central (BC). Em uma conversa franca entre Paulo Aragão, do Cointelegraph Brasil, e o advogado Rafael Stainfield, especialista em cripto desde 2015, emergiu um retrato preocupante: exigências de capital elevadas, classificação de operações como câmbio, com risco real de IOF, restrições a moedas de privacidade e obrigações duras para exchanges internacionais.
Segundo Stainfield, o BC publicou três resoluções que redesenham o jogo. A Resolução 19, define as regras de autorização para as Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (PSAVs), categoria que engloba as exchanges e quaisquer empresas que custodiem, intermediem, comprem ou vendam criptoativos. Além disso, a Resolução 520 trata de vedações e requisitos (como o tema das moedas de privacidade), enquanto a Resolução 521 insere atividades com ativos virtuais no escopo do mercado de câmbio.
O cronograma também veio definido. As regras de autorização entram em vigor em 2 de fevereiro de 2026, com um período de transição de 270 dias para quem já atua. Já o ponto mais sensível, o enquadramento de certas operações de cripto como câmbio, passa a valer em 4 de maio de 2026.
Capital mínimo: do sonho de R$ 1 milhão ao choque de R$ 15 milhões
Talvez o golpe mais duro tenha vindo da exigência de capital e patrimônio líquido permanentes. Houve expectativa de algo entre R$ 1 milhão e R$ 3 milhões, com adicionais por atividade.
Contudo, a regra final, na leitura do especialista, elevou o piso de forma dramática. Pelo cálculo apresentado, uma corretora que faça intermediação e custódia precisará manter patrimônio líquido permanente de pelo menos R$ 13,6 milhões. Na prática, para não cair abaixo do mínimo durante a operação, o “colchão” teria de ser próximo a R$ 15 milhões.
A diferença entre capital social integralizado e patrimônio líquido permanente é crucial. O primeiro é o valor que a empresa integraliza ao constituir-se e comprova ao BC; o segundo é um nível que deve permanecer ao longo do tempo. Investimentos em estrutura, folha e tecnologia reduzem o patrimônio líquido; cair abaixo do piso coloca a empresa em irregularidade. Resultado: uma barreira de entrada e permanência alta, especialmente para pequenas e médias.
Segundo censo da ABCripto de 2023, mais de 80% dos players no Brasil são de pequeno ou médio porte. Stainfield alerta que muitos não conseguirão levantar R$ 11–15 milhões para cumprir a exigência. Um exemplo citado: empresa com faturamento médio de R$ 150 mil por mês, enxuta, formal, que gera empregos e paga impostos, mas sem chance realista de captar tal montante. O resultado provável, diz ele: saída em massa de operadores e concentração do mercado nas mãos de poucos.
Menos concorrência pode significar serviços piores e mais caros no médio prazo. E o setor perde uma trilha histórica de inovação, que sempre começou pequena antes de escalar.
“Google, PayPal, Nubank” e as veteranas locais Mercado Bitcoin e Foxbit não nasceram gigantes. Erguer um muro de R$ 15 milhões tende a inibir a próxima onda.
Moedas de privacidade: vedação explícita
Outro ponto polêmico: com base na Resolução 520, moedas de privacidade que facilitam anonimato — como Monero e Zcash — não poderão ser ofertadas por PSAVs no Brasil. Exchanges internacionais que quiserem operar como PSAV terão de remover esses ativos de seu portfólio local.
Falando em exchanges internacionais, o novo regime exige presença jurídica no país, com pelo menos três diretores residentes. Além disso, obrigações fiscais passam a valer, incluindo o reporte mensal da IN 188 à Receita Federal. Mesmo hoje, ressaltou o advogado, autoridades brasileiras conseguem obter dados por meio de intimações formais; o novo arcabouço torna essa relação mais direta.
As novas regras obrigam as PSAVs a identificar origem e destino dos criptoativos em depósitos e saques externos. A norma não detalha o “como”, mas a prática de mercado aponta para white lists, verificação por códigos e autodeclaração de posse. Na prática, CPF e endereços on-chain podem ficar associados, aumentando a rastreabilidade — o que eleva a conformidade, mas desagrada quem prioriza autocustódia e privacidade.
Câmbio e o “fantasma” do IOF: hoje não tem, amanhã pode ter
Aqui está o nó central. A Resolução 521 faz quatro movimentos: classifica como câmbio (i) pagamentos/transferências internacionais com cripto; (ii) transferências vinculadas ao uso internacional de cartões; (iii) transferências de ou para carteiras autocustodiadas, ainda que sem caráter internacional; e (iv) compra, venda ou troca de ativos virtuais referenciados em moeda fiduciária — leia-se stablecoins. Em linguagem direta: sacar Bitcoin para a sua carteira pode virar operação de câmbio; trocar BTC por USDT também.
Hoje, 12 de novembro de 2025, não há IOF sobre essas operações, porque o decreto do IOF vigente não as alcança. Porém, ao enquadrar como câmbio, o BC abre a porta regulatória para que o Executivo tribute no futuro, por “canetada”. A partir de 4 de maio de 2026, quando o enquadramento em câmbio passa a valer, o risco de IOF deixa de ser tese e vira possibilidade concreta.
O impacto potencial foi ilustrado no debate: num cenário hipotético, entrada em exchange, conversão para stablecoin, reconversão para Bitcoin e saque para autocustódia — se cada etapa sofrer IOF, o custo acumulado vira pedágio inibidor. Mesmo que as alíquotas fossem baixas, o efeito composto corrói rentabilidade, empurra investidores para “ficar parados” dentro de poucas plataformas e penaliza quem retira fundos por segurança.
P2P: quando pode e quando esbarra
O P2P ocasional — por exemplo, uma transação esporádica entre pessoas físicas — tende a continuar possível. Mas o P2P como atividade empresarial — recorrente e com intuito comercial — esbarra no novo regime. Na leitura do especialista, atuar como “P2P profissional” sem se tornar PSAV configura burla às novas regras
Nem tudo é freio. Um avanço real é a segregação patrimonial: fundos dos clientes separados dos recursos da empresa. Após o colapso da FTX, isso se tornou clamor global. No Brasil, o princípio chega com força normativa, reduz risco de confusão de caixa e protege o usuário em cenários de estresse.
Bloqueio de IP/URL não está na letra da regra, destacou Stainfield. A lógica é outra: não proibir o acesso, mas impedir a oferta de serviços em reais por quem não é PSAV. Enviar cripto para fora e operar em jurisdição estrangeira pode continuar tecnicamente possível, mas carregará a etiqueta de câmbio quando a regra passar a valer, com todos os efeitos colaterais potenciais.
O debate já chegou ao Congresso. Em 11 de novembro de 2025, o deputado Rodrigo Valadares protocolou Projeto de Decreto Legislativo para sustar os efeitos das Resoluções 520 e 521. A justificativa cita abuso de poder, risco de IOF e controle de capitais. Se tem lastro político suficiente? Ninguém arrisca. Mas o sinal é claro: o tema entrou na arena pública.
O que o Banco Central não disse explicitamente. e que o mercado precisa encarar
Primeiro, o custo regulatório não é detalhe técnico; é fator de sobrevivência. Ao exigir patrimônio líquido permanente nessa ordem de grandeza, o regulador escolhe um mercado com poucos atores. Segundo, ao levar transferências, trocas e saques para a esfera do câmbio, o BC cria o trilho jurídico para tributação futura via IOF. Hoje não tem; amanhã pode ter. Terceiro, a autocustódia — um dos pilares culturais do cripto — passa a ser desencorajada se cada ida e volta ao mundo “on-chain” virar operação onerável.
Nada disso invalida a necessidade de regular. Regras claras protegem consumidores, dão parâmetros para supervisão e reduzem arbitragens ruins. Mas calibragem importa. É possível criar salvaguardas sem matar a competição. É possível integrar o cripto ao câmbio sem converter todo movimento em pedágio. É possível combater anonimato nocivo sem criminalizar a autonomia do usuário.