Doze anos se passaram desde que Satoshi Nakamoto implodiu o mundo das finanças convencionais. As criptomoedas nasceram de uma economia paralela com um espírito de liberdade monetária e por um tempo permaneceram à margem, limitadas a um nicho de público de apaixonados por criptografia, pioneiros da web, fintechs e empreendedores iniciantes baseados em tecnologia.
Uma década depois desse big bang cripto, nomes como Bitcoin e Ether, entre outros criptoativos, se estabeleceram no glossário de economistas e pessoas comuns ligadas à mídia tradicional. O motivo? No final de 2019, as altas acentuadas e os ganhos expressivos de muitos dos investidores lançaram luz ao fenômeno. O mercado desenvolveu-se em volume e com elevada capitalização de mercado para as empresas que exploraram o negócio.
Os mais indiferentes enxergaram apenas uma sequência numérica de uns e zeros, capaz de gerar valores sem precedentes e com efeitos que poderiam ser traduzidos no espaço econômico real. Hoje a agenda política latino-americana é debatida entre uma vanguarda pró-cripto, que tenta imitar a flexibilidade da Estônia, Letônia e outros países da antiga Europa comunista, e aqueles governos latinos que veem no avanço das finanças descentralizadas um demônio a ser exorcizado pelo peso regulatório do Estado.
Minha experiência da região revelou que a regulação geralmente se concentrava na identificação de intermediários financeiros e exchanges de criptomoedas, concedendo licenças oficiais a esses operadores e, em alguns casos, estabelecendo a necessidade de registro de dados pessoais dos usuários e mesmo dos operadores envolvidos nas transações.
A ansiedade regulatória de alguns Estados frente ao fenômeno cripto, de natureza econômica sui generis e dinâmica mutável, encontrou resistências dentro da comunidade digital que costuma desconfiar de quaisquer notícias que possa marginalmente ser associada à perda de privacidade .
El Salvador abalou o conselho regulatório há alguns meses ao anunciar que seria o primeiro país do mundo a tornar o Bitcoin uma moeda legal. Apenas 16 sessões de debate foram suficientes para que o presidente e maior defensor da iniciativa, Nayib Bukele, fizesse esse avanço. Bukele, com seus quarenta anos, é o mais jovem presidente da América Latina e um prolífico usuário das redes sociais com as quais busca se posicionar como líder e referência mundial. Ele tem o hábito de distribuir ordens no Twitter aos ministros de seu gabinete, que retuíam seus comandos com um: “Agora mesmo, o presidente”; ele promulgou a Lei Bitcoin com o objetivo de regulamentar a criptomoeda e reconhecê-la oficialmente como um ativo financeiro.
No país centro-americano, desde que seja oferecido como meio de pagamento, os agentes econômicos serão obrigados - a partir de 7 de setembro - a aceitá-lo em qualquer compra de bens e serviços, exceto nos casos em que a pessoa por sua limitações econômicas não haja possibilidade do uso de recursos tecnológicos para realizar a operação. Para fazer avançar a medida, Bukele instalou 200 caixas eletrônicos de Bitcoin em todo El Salvador.
O BTC não tem base monetária, então o governo criou um fundo de 150 milhões de dólares para apoiar as conversões entre o ativo digital e a moeda americana. O presidente está confiante de que o país economizará 400 milhões de dólares em comissões pagas por cidadãos às instituições financeiras para receber dinheiro do exterior. Ousadia, impulsividade ou desenvoltura? Só o tempo pode julgar o que acontece na economia de El Salvador, que hoje funciona como um laboratório para um dos movimentos regulatórios mais perturbadores em criptoativos.
Menos radicais foram outras experiências da região que tenderam a uma adaptação progressiva das criptomoedas na economia. Até a legislação de Bukele, o país mais avançado da América Latina para implementar a regulamentação era o México. Através de sua lei Fintech - com seus prós e contras - ele dedicou um espaço central aos ativos digitais, embora tenha se concentrado mais nas entidades que os emitem e não tanto nas transações entre usuários privados. O Estado mexicano definiu o quadro das criptomoedas e possibilitou a prática para as instituições financeiras, mas limitou a atividade à aprovação de seu Banco Central, que intervém em todas as operações.
A influência de El Salvador penetrou mais profundamente no Panamá, onde a assembléia legislativa dias atrás começou a discutir um projeto para regular as criptomoedas e aceitá-las como meio de pagamento. A iniciativa traz a novidade de possibilitar o uso de criptoativos para cancelar encargos tributários e dívidas com o Tesouro, que o Estado deve, então, trocar stablecoins para evitar a volatilidade de um estoque estadual de criptoativos mais voláteis. O projeto também dedica um capítulo especial à mineração, permitindo a atividade com o uso de energia renovável e obrigando os mineiros da rede a pagar 25% do seu lucro líquido pelas extrações anuais de Bitcoin.
Na América do Sul, ainda predomina a autorregulação do criptomercado, embora também estejam previstos projetos que busquem limitar ou definir seu escopo. No Uruguai, um projeto de lei recentemente aprovado visa regulamentar a venda e armazenamento de criptomoedas para dar um quadro jurídico à atividade e atrair o investimento de capital estrangeiro. Em caso de êxito, o Estado é quem monopolizaria a concessão de licenças aos diferentes operadores. No Brasil o avanço regulatório é mais lento, embora as autoridades financeiras tenham mostrado acenos para o uso de criptomoedas. No Paraguai, avança um projeto relacionado ao BTC, com semelhanças com o caso de El Salvador, mas mais voltado para a promoção da mineração de criptomoedas.
Já na Argentina, os criptófilos se multiplicam e florescem a cada dia, inicialmente motivados a encontrar alternativas à moeda local e um refúgio dos efeitos da inflação, mas sua regulação até agora é oscilante. O partido no poder, liderado pelo presidente Alberto Fernández, apresentou nos últimos meses de 2020 um projeto, que ainda não apareceu, para aparar integralmente todas as arestas que tocam o universo dos criptoativos.
A iniciativa levantou alguns alertas entre os juristas argentinos devido à sua amplitude regulatória e ao objetivo impreciso de controlar o mercado de criptomoedas. As contrapropostas ao projeto sustentam que o Estado, por meio da Comissão de Valores Mobiliários de cada país, deve se limitar a adaptar novas tecnologias e permitir a criação de títulos vinculados a um determinado sistema blockchain. Os especialistas alertaram também para os riscos de avançar com uma lei que iguale as exchanges a uma entidade bancária tradicional.
A Argentina ainda não definiu uma posição clara sobre o futuro das criptomoedas no país. Porém, recentemente o chefe do Banco Central Miguel Ángel Pesce, analisou que é preciso ensinar com a população a explicar o que são esses instrumentos que podem favorecer o acesso das pessoas ao mercado de capitais e reconheceu o dinamismo que as empresas fintech proporcionam.
A trajetória jurídica dos países da região é tão heterogênea quanto a multiplicidade de moedas que compõem o criptoecossistema. O caráter supranacional com que se manifestam esses ativos faz com que suas transações financeiras não sejam facilmente intervencionadas pelos Estados, uma encruzilhada para as intenções regulatórias tanto dos países latino-americanos como do resto do mundo. A privatização da emissão monetária continuará a incomodar os governos, pelo menos enquanto eles persistirem em querer treinar criptomoedas.
Em resumo, El Salvador adotando o Bitcoin como moeda legal é um avanço muito importante para o ecossistema. Muito provavelmente, veremos seu impacto a longo prazo. É um daqueles eventos que entram na história do Bitcoin e das criptomoedas. Assim como uma vez realizada a primeira operação com Bitcoin, ou quando foi adquirido um bem material - como aconteceu no dia da pizza do Bitcoin -, o que aconteceu em El Salvador é um episódio memorável. Que um país permita pagar com Bitcoin é algo incrível e não tenho dúvidas de que será um ponto de partida para outros estados fazerem o mesmo.
Matias Bari é CEO e cofundador da exchange de criptomoedas SatoshiTango.
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