Uma combinação de fatores convergiu para uma tempestade perfeita na sexta-feira, desencadeando o maior evento de liquidação da história da indústria de criptomoedas e fazendo o Bitcoin (BTC) cair brevemente abaixo de US$ 110.000.
Os US$ 19 bilhões em liquidações não significam que os investidores perderam essa quantia, mas que posições alavancadas foram encerradas à força.
A perda não realizada pode ser observada com mais clareza na queda da capitalização de mercado, que mostra uma eliminação de US$ 450 bilhões. De sexta-feira a domingo, o valor total do mercado de criptomoedas caiu de US$ 4,24 trilhões para US$ 3,79 trilhões. No momento da redação, o mercado já havia se recuperado para acima de US$ 4 trilhões.
Analistas ainda tentam entender como uma combinação de choques macroeconômicos, erros de precificação em exchanges e posições excessivamente alavancadas resultou na maior liquidação diária da história da indústria. Veja o que se sabe até agora.
Choque tarifário atinge mercados globais e cripto
Na sexta-feira, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, intensificou a guerra comercial que marcou grande parte de seu mandato, ao ameaçar uma tarifa de 100% sobre importações chinesas a partir de 1º de novembro, “ou antes, dependendo de quaisquer novas ações ou mudanças adotadas pela China”.
No mercado cripto, alguns analistas acreditam que a queda naquele mesmo dia foi causada não pela ameaça de tarifas, mas por uma falha em um oráculo de preços específico do setor. No entanto, uma comparação com os índices do mercado tradicional revela que a venda generalizada não se limitou às criptomoedas.
O Nasdaq-100, que acompanha as 100 principais empresas não financeiras, liderou as quedas entre os índices dos EUA, recuando 3,49% até o fechamento de sexta-feira. O S&P 500 caiu 2,71%, enquanto o Dow Jones Industrial Average, composto por 30 empresas de grande capitalização, perdeu 1,9%.
O Bitcoin superou todos eles na queda, recuando 3,93% durante o pregão regular e continuando a cair após o fechamento dos mercados dos EUA.
Falha de oráculo na Binance é apontada como causa do colapso cripto
Embora o anúncio tarifário de Trump tenha desencadeado a venda generalizada nos mercados globais e a queda do Bitcoin no fim de semana, fatores específicos da indústria ampliaram os danos após o fechamento das bolsas tradicionais.
Um dos pontos críticos foi o USDe, o dólar sintético da Ethena, que mantém sua paridade com o dólar por meio de uma estratégia delta-neutra no mercado de futuros perpétuos. Na sexta-feira, o USDe pareceu perder a paridade, despencando para US$ 0,65, mas isso foi visível principalmente na Binance. Em outras exchanges, o USDe foi negociado com a leve volatilidade típica de tokens atrelados ao dólar durante períodos de turbulência de mercado.
De acordo com uma análise do usuário YQ no X, o colapso foi desencadeado por uma venda massiva de USDe que expôs falhas no oráculo de margem unificada da Binance. O sistema precificava ativos colaterais, como USDe, wBETH e BNSOL, com base nos próprios livros de ordens à vista da Binance, que os desvalorizaram drasticamente em tempo real. Isso gerou uma cadeia de liquidações que drenou a liquidez em diversas plataformas interconectadas.
Outras exchanges que utilizavam os preços da Binance seguiram o mesmo caminho, mesmo com o USDe e os ativos relacionados sendo negociados normalmente em outros locais. YQ descreveu o incidente como uma falha de oráculo, e não como um colapso de mercado convencional.
Em uma análise separada, Haseeb Qureshi, sócio-gerente do fundo de investimento em cripto Dragonfly, afirmou que o USDe nunca chegou a perder sua paridade, observando que sua maior liquidez estava na Curve, onde os preços variaram menos de 0,3%. Na Binance, falhas na API e a ausência de um canal direto de emissão e resgate com a Ethena impediram os formadores de mercado de restaurar o preço-alvo.
Ainda é cedo para responsabilizar a Binance pelo último crash cripto
O analista da Delphi Digital, Trevor King, afirmou que a Binance cometeu um erro conceitual ao avaliar ativos tokenizados, como wBETH, BNSOL e USDe, com base em seus próprios preços à vista, em vez de em seus valores de resgate subjacentes. Isso fez com que o colateral parecesse muito mais fraco do que realmente era, desencadeando liquidações em massa.
Como o oráculo da Binance acabou se tornando o “preço de referência” de fato em todo o ecossistema de negociação alavancada, esses preços incorretos se espalharam para outras exchanges e DEXs. No entanto, o analista destacou que ainda é cedo para atribuir a causa principal exclusivamente à Binance, pois o timing do início da liquidação em cascata merece mais investigação.
Essa também é parte da defesa da Binance. A exchange afirmou em comunicado que seus motores principais de negociação à vista e de futuros, assim como as APIs, permaneceram operacionais durante o evento, e atribuiu a volatilidade “principalmente às condições gerais do mercado”.
Entretanto, a empresa reconheceu que nem todos os módulos funcionaram como deveriam:
“A revisão confirmou que, após 10/10/2025 às 21h18 (UTC), alguns módulos da plataforma apresentaram breves falhas técnicas, e certos ativos enfrentaram problemas de desvalorização devido às fortes flutuações de mercado.”
A Binance também anunciou que US$ 283 milhões foram distribuídos em duas rodadas para compensar clientes afetados. O token da exchange, BNB (BNB), atingiu uma nova máxima histórica na segunda-feira.
No sábado, a Binance atualizou seus feeds de preços de margem para wBETH e BNSOL, substituindo suas avaliações baseadas em preços à vista pelos valores oficiais de conversão de staking. A mudança estava originalmente programada para terça-feira, 14 de outubro, mas foi antecipada devido à turbulência no mercado.
Hyperliquid defende seu papel na liquidação de US$ 19 bilhões
A Hyperliquid é considerada a estrela em ascensão do mercado cripto e o DEX líder em volume de futuros perpétuos, segundo dados da DefiLlama, que recentemente removeu as informações da rival Aster por preocupações com integridade. A Aster, concorrente da Hyperliquid, é apoiada pela divisão de investimentos da Binance, YZi Labs.
A Hyperliquid também foi listada como a principal plataforma onde ocorreu a maior parte das liquidações durante o colapso de US$ 19 bilhões, o que levou Kris Marszalek, CEO da Crypto.com, a pedir uma investigação sobre as principais plataformas de derivativos.
O fundador da Hyperliquid, Jeff Yan, defendeu sua exchange afirmando que ela funcionou conforme o esperado, mantendo 100% de tempo de atividade e nenhuma dívida incobrável durante toda a turbulência.
Ele explicou que as liquidações não foram causadas por uma falha do sistema, mas sim por excesso de alavancagem durante uma queda repentina do mercado, que fez com que muitas altcoins despencassem mais de 50% em questão de minutos.
O processo de liquidação da Hyperliquid tenta primeiro fechar posições subcolateralizadas por meio do livro de ordens, e depois recorre aos cofres de provedores de liquidez (Hyperliquid Liquidity Provider vaults) como liquidadores de reserva. Se ambos falharem, a exchange aciona o mecanismo de auto-desalavancagem, que fecha posições lucrativas do lado vencedor para manter a solvência.
Yan também rebateu as críticas, acusando exchanges concorrentes de tentar desviar a culpa.
“Solvência e tempo de atividade são as duas propriedades mais importantes de um sistema financeiro”, disse ele, classificando as tentativas de “iludir os usuários” sobre o desempenho da Hyperliquid como antiéticas. Ele destacou a transparência on-chain da Hyperliquid em contraste com as práticas opacas de liquidação das exchanges centralizadas, argumentando que o episódio demonstrou a resiliência do sistema de margem da plataforma, e não uma falha.
Short de baleia na Hyperliquid antes do colapso de US$ 19 bilhões no mercado cripto
Mais de 250 carteiras perderam o status de milionárias na Hyperliquid desde o colapso de sexta-feira, segundo dados do HyperTracker. Diversas carteiras foram apelidadas de “baleias da Hyperliquid”, mas uma delas, em especial, despertou atenção pela sincronia incomum e lucros extraordinários.
Um trader na DEX de derivativos chamou atenção após abrir uma posição short minutos antes do anúncio das tarifas de Trump na sexta-feira, obtendo US$ 192 milhões em lucro.
No domingo, a mesma carteira abriu outra aposta gigantesca: um short de US$ 163 milhões contra o Bitcoin, com alavancagem de 10x, já acumulando cerca de US$ 3,5 milhões em lucro. A posição será liquidada se o Bitcoin subir para US$ 125.500.
O timing dessas operações levou muitos na comunidade cripto a rotular o trader como uma “baleia insider”, com alguns especulando que suas posições podem ter contribuído para a liquidação em cascata de US$ 19 bilhões registrada no fim de semana.