A emissão de moeda ou criação de depósitos bancários “do nada” gera inflação. 

Quando maior a quantidade de dinheiro em uma economia, o que é conhecido como oferta monetária, mais caros os produtos e serviços e menor o poder de compra da população.
Ao cidadão comum, quando os governos optam por este tipo de “remédio monetário”, só resta assistir ao valor do seu dinheiro esvair-se, ou existe alguma alternativa para a proteção de seu patrimônio?

É esta a pergunta chave que este artigo se propõe a responder.

O último vestígio do padrão “ouro” 

Na antiguidade, o comércio era feito com moedas privadas, geralmente uma commodity como ouro ou prata, de modo que tínhamos um universalismo da moeda.

A moeda, então, tinha um caráter privado, era desvinculada de qualquer Estado, e servia para promover o livre-comércio, bem como um freio sólido e confiável ao poder dos governos. 

Mas há 100 anos atrás, o desenvolvimento da moeda migrou do privado para o publico, deixando de existir a separação Moeda e Estado. 

O desenvolvimento da moeda migrou das forças de mercado para as mãos dos governos, e os últimos vestígios do padrão-ouro acabaram sendo eliminados na década de 70, com o presidente americano Richard Nixon desvinculando o ouro como lastro do dólar em 1971.

Desde então, os governos, através de seus Bancos Centrais, podem imprimir quantidades quase ilimitadas de dinheiro, até que a população perca a confiança na moeda.

Apertem os cintos, na pandemia a escassez sumiu! 

 

Com a progressão da pandemia do Coronavirus, no começo de 2020, todos nós assistimos assustados uma mudança histórica do mercado de trabalho, em direção ao trabalho remoto, a maior queda na produção econômica desde a Grande Depressão de 1930, bem como a reação do FED -  Federal Reserve (banco central americano), injetando no mercado a maior onda de impressão de dinheiro nos seus 107 anos de história. 

Definitivamente, 2020 não foi para amadores e, talvez por isso, tenhamos visto os primeiros sinais reais de gestores de capital, bancos, seguradoras e grandes empresas começando a abraçar as criptomoedas e os ativos digitais.

Com todo o caos econômico, financeiro e social desenrolando-se por conta da pandemia, 2020 acabou criando um cenário extremamente favorável para o aumento adoção do bitcoin.

A tempestade perfeita 

Até recentemente, considerado um investimento marginal pelo mercado tradicional, desacreditado por gente como o investidor bilionário Warren Buffett como “sem valor”, ao longo de 2020 várias empresas de grande porte surpreenderam ao adicionaram ao seu portfólio uma exposição significativa em bitcoin.

A Square comprou US $ 50 milhões em bitcoin em outubro de 2020. A empresa de inteligência de negócios Microstrategy adquiriu mais de US $ 1 bilhão de dólares do ativo, com seu CEO Michael Saylor, ex-crítico do Bitcoin, declarando num tweet que possui 17 mil bitcoins em seu portfólio pessoal. 

Outras empresas, com base em tendências macroeconômicas, também seguiram o mesmo caminho e adicionaram bitcoins a seus balanços patrimoniais. Na lista, incluem-se JPMorgan Chase, BlackRock (maior empresa de custódia de ativos do mundo, Alliance Bernstein, Fidelity Investments, GrayScale, Morgan Stanley, Tudor Investments, Square, dentre outras.

Pois bem, no final de 2020, o valor do Bitcoin quase quadruplicou e, em Fevereiro de 2021 atingiu nova máxima histórica – 58 mil dólares. 
Bitcoin definitivamente ganhou o centro das conversas entre grandes investidores de Wall Street. E aos que ainda duvidam da adoção institucional, quantas vezes, desde 2017, você ouviu falar que investidores institucionais estão entrando em Bitcoin?

A queda na produção econômica com o aumento de estímulos relacionados ao Coronavirus, (com bancos centrais e governos em todo o mundo injetando trilhões de dólares na economia, tem levado investidores institucionais a enxergarem o BTC como hedge e ativo de proteção. 

E desta vez não há dúvidas. Para quem quiser checar os dados para confirmar, basta olhar abaixo para ver a lista crescente de empresas que possuem bitcoins em seus balanços.

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Mas bitcoin é hedge ou um ativo cíclico? 

Um relatório, publicado em Fevereiro de 2021 pelo JPMorgan Chase, não vê o bitcoin como um ativo porto-seguro, nem como um hedge numa situação de estresse dos mercados. O relatório minimiza a comparação comum do bitcoin com o ouro e, conquanto reconheça que o criptoativo possui propriedades de “diversificação”, alerta que suas “características de volatilidade e perfil de correlação refutam a comparação com o ativo porto seguro tradicional”.

Também, diz o JP Morgan Chase, que o aumento da adoção do bitcoin no varejo o tornou mais semelhante a um ativo cíclico; isto é, um ativo que sobe e desce junto com o mercado de ações.

Como estamos em tempos de polarização, aponto a seguir os principais contra-argumentos ao mencionado relatório.

O relatório do JP Morgan fundamentou-se na queda do bitcoin no início da pandemia, junto com os demais ativos, além de ter levado em conta apenas alguns riscos, e não outros.  Ainda, o lançamento do relatório ocorreu quase simultaneamente ao lançamento do JPM Coin, o que levanta suspeitas.

Mas independente de qual o posicionamento dominante no mercado, uma coisa é certa: é extremamente difícil, no momento atual, a qual classe de ativos pertencem as criptomoedas. É moeda ou ouro digital? É commodity? Em meu primeiro livro, Criptomoedas no Cenário Internacional, identifiquei mais de 70 tipos de naturezas jurídicas às criptomoedas.

Talvez, o mais adequado é identificar que bitcoin não é um ativo de proteção no sentido estritamente tradicional, mas que pode proteger os investidores contra riscos políticos e riscos monetários.

Bitcoin é um tipo diferente de hedge 

Um bom ativo de hedge deve ser resiliente às forças que podem diminuir o valor da maioria dos ativos. E como um ativo em maturação, o comportamento do bitcoin não segue um padrão rígido em todas as situações.
Suas propriedades exclusivas o colocam como algo completamente distinto das categorias de instrumentos financeiros tradicionais.

Em alguns países, bitcoin funciona como enorme proteção contra a inflação em muitos países do mundo; em outros, onde há um risco generalizado nos mercados de ações e no mercado de títulos, bitcoin pode seguir a tendência dos demais ativos porque é o ativo mais liquido para muitas pessoas.

E apesar de alguns defenderem que bitcoin não tem a força do dólar em prazos mais curtos de stress dos mercados, isto não significa que ele não sirva de hedge para eventos como um aumento da inflação ou um choque político. Ativo de alta volatilidade, investimento de alto retorno que é, impulsionado por suas características próprias, bitcoin pode sim oferecer diversificação de portfólio, ao invés de ser uma ferramenta de hedge pura em um portfólio.

Em março de 2020, quase todos os ativos líquidos tiveram um declínio simultâneo. Mas Isso não significava necessariamente que o Bitcoin e as ações seguiriam demonstrando uma relação semelhante. 

Bem por isso, quando a Cointelegraph Brasil me perguntou em abril de 2020 sobre o que esperar do Bitcoin, eu respondi que a “pandemia pode levar as pessoas a perceberem o real valor e a importância do dinheiro, e a se questionarem sobre a importância de ter uma reserva de valor e meio de troca com amplitude global como o Bitcoin.” E foi o que aconteceu. No acumulado do ano, o Bitcoin valorizou 207%; enquanto o índice SP 500 ficou em 13,3%, e o ouro em 22,6%.

 

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É sempre importante distinguir os impactos de liquidez de curto prazo sobre os investimentos dos ativos com atributos e propriedades fundamentais como o Bitcoin.

Mas não tem inflação no Bitcoin? Bitcoin é arbitrário... 

A oferta circulante de BTC inflou 2,74% nos últimos 365 dias e inflará 1,78% nos próximos, segundo dados da Paradigma Education.

A rede bitcoin é arbitrária, e foi programada para reduzir o ritmo de emissão de bitcoins ao longo do tempo.

Por isso, a cada 4 anos acontece o “halving”, evento onde "uma vez a cada quatro anos", ocorre a redução da recompensa paga aos mineradores. (a emissão de novos bitcoins é reduzida pela metade). Aqui vale a pena mencionar uma curiosidade, é comum que sites sejam criados para contar os dias, horas, minutos e segundos restantes até que o halving aconteça, como por exemplo, o bitcoinblockhalf.com .

Pois bem, em 11 de maio de 2020, o bloco 630.000 na rede Bitcoin foi minerado. E a taxa na qual novos bitcoins são produzidos caiu de 12,5 para 6,25 a cada 10 minutos.

Halving é mais!

O halving, veio em um momento em que o Federal Reserve (Banco Central dos dos EUA) emitiu uma quantidade sem precedentes de dinheiro “novo” por meio de "flexibilização quantitativa".

 

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Não a toa, a F2Pool (que extraiu o último bloco antes do halving de 2020 – bloco 629.999), imitando a mensagem de Satoshi Nakamoto no bloco gênese do Bitcoin, gravou na blockchain do bitcoin, em referencia ao atual plano do Fed que supera em muito o resgate dos bancos na crise financeira de 2008:  "NYTimes 09 / abr / 2020 com injeção de $ 2,3T”

 

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A implicação aqui é clara: a expansão monetária sem precedentes do FED e dos demais bancos centrais ao longo do mundo é positiva para o bitcoin.

A “obra prima” da engenharia monetária

Bitcoin é uma “obra prima da engenharia monetária”, e “a primeira rede monetária projetada com sucesso na história do mundo”, como disse o CEO da Microstrategy Michael Saylor.
E seguindo a linha destas palavras, o mercado tradicional abandonou a velha narrativa de bitcoin como um ativo especulativo para enxergá-lo agora como “o melhor ativo a longo prazo, um verdadeiro porto seguro em tempos de expansão monetária desenfreada.

Note que as características do bitcoin não mudaram desde sua criação. O “Bloco Gênesis” do Bitcoin já indicava sua missão como um ativo de proteção de riqueza contra a inflação monetária. 

Na verdade, o que mudou foi a percepção do mercado tradicional e a melhor compreensão dos novos players. O potencial do Bitcoin é, sem dúvida, a longo prazo, como um veículo de armazenamento de riqueza que fica a parte de qualquer economia e política monetária. Não a toa o bitcoin foi o ativo com melhor desempenho na última década.

E essa é uma narrativa que vem ganhando a cada dia mais adeptos e tem levado os usuários a manter o bitcoin por longos períodos de tempo, em vez de negociar por lucros de curto prazo.

Você prefere um Porsche ou um bitcoin? 

Apenas 21 milhões de bitcoins existirão, com base no software do ativo digital. Atualmente, a oferta circulante de Bitcoin está em cerca de 18,6 milhões. 
Portanto, ao contrário de moedas nacionais como ouro ou outros ativos, o estoque do Bitcoin é finito e, apesar de novos bitcoins serem liberados de seu suprimento máximo para o suprimento circulante pouco a pouco, esse suprimento máximo de 21 milhões não mudará. 

E a escassez é uma mega qualidade para um ativo que pretende ser o guardião da riqueza. Como nada melhor que exemplos para compreendermos algo.... 

Em novembro de 2017, o quadro “Salvator Mundi”, um retrato de Cristo pintado por Leonardo da Vinci, foi vendido por US$ 450,3 milhões de dólares.  Considerado o diamante mais caro do mundo, o The Constellation foi encontrado pela mineradora canadense Lucara Diamond em 2015, em Botswana – Africa –, e vendido num leilão em Dubai organizado pela Sotheby’s em 2016 por US$ 63 milhões de dólares.

Um vaso de porcelana de 900 anos da dinastia chinesa Song foi vendido em 2017, numa operação da Sotheby’s em Hong Kong por US$ 37,68 milhões de dólares. A primeira unidade do carro Aston Martin DBR1, fabricada em 1956, foi vendida por US$ 22,5 milhões de dólares em 2017. Ah! Você não gosta de Aston Martin...

No ano de 2019, a Porsche produziu um total de 274.463 veículos, e cada veículo foi vendido por mais de US $ 85.963 dólares (e há mais demanda por Porches do que nunca)... 

 

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Em 2021, apenas 328.500 novos bitcoins serão minerados. Atualmente, um bitcoin é vendido por USD $ 53 mil dólares. Você prefere um Porsche ou um bitcoin?”

Outra característica do bitcoin que é vista como vantajosa por quem defende a exposição do criptoativo é o fato dos detentores de bitcoin poderem armazenar e transferir grandes somas de dinheiro com muito mais facilidade que outros ativos de hedge – como ouro ou imóveis.  Imagina levar o equivalente ao preço de um apartamento no seu bolso!?

Takeaway

Aqui, merece destaque o fato de que não é aconselhável “rebaixar” o bitcoin, equiparando-o a um derivado fiduciário, como um título ou ação, porque não o é. 
Bitcoin é um novo tipo de ativo, ainda em maturação e evolução, cujo alcance e efeitos ainda é impossível de se dimensionar e qualificar. Não sabíamos onde a energia elétrica nos levaria quando Thomas Edson descobriu a lâmpada, nem que teríamos uma verdadeira economia digital quando a internet começava nascer na década de 60.

Aliás, um fato curioso sobre a internet e que vale trazer aqui para ilustrar como às vezes é cedo “julgar “uma nova tecnologia ainda em estágio inicial, é a manchete do Daily Maily, de 5 de dezembro de 2000:

“Internet pode ser apenas uma moda passageira, já que milhões desistem dela”

 

Filippo Lorenzin on Twitter: "Daily Mail (5th December 2000)… "

Daily Mail (5th dec 2000)

Claro que há fervorosas críticas ao bitcoin como ativo, e mais ainda como ativo de proteção. 

Mas é interessante perceber que o bitcoin não está vinculado à dívida ou à luta de nenhum país específico, não possui fronteiras, viabiliza que os usuários mantenham, controlem seus próprios fundos e, ainda, realizem transações globais rapidamente.

Talvez não seja tão fácil a todos “aprenderem a desaprender”, para aprender novos conceitos. 

Mas aquelas pessoas que ao menos tentarem, o prêmio de perceber o bitcoin como uma ferramenta capaz de preservar o poder de compra em tempos de instabilidade política e incerteza monetária, não tem preço.

É como assistir a uma corrida de F1, sem precisar se preocupar com os acidentes do percurso, ou apostar em qual carro vai ganhar.