No cenário atual, onde Estados lutam para cumprir suas promessas e corporações priorizam lucros acima de qualquer outra coisa, Mariano Lopez Hermida, co-fundador da Sthorm, propõe uma alternativa: a governança cibernética antifrágil.
Durante uma conversa com o Cointelegraph, em um evento organizado nestes sábado, 15, pela Sthorm, Hermida defendeu que a única saída viável para os desafios contemporâneos é repensar os sistemas de governança e identidade, criando mecanismos que não apenas resistam a crises, mas que cresçam e se fortaleçam diante delas, para ajudar a preservar a vida no planeta, que segundo ele, é a missão maior da Sthorm e de suas iniciativas.
"A tecnologia estatal tradicional está em colapso", afirmou Hermida. "Governos não conseguem mais atender às necessidades básicas da população, e a democracia como sistema de governança está sendo contestada em várias partes do mundo. Enquanto isso, as grandes corporações seguem uma lógica de concentração de riqueza, deixando para trás qualquer compromisso com a sociedade."
Para ele, a solução está na descentralização radical do poder, usando ferramentas tecnológicas que permitam a criação de sistemas de governança independentes, baseados em redes e protocolos digitais imutáveis.
A visão de Hermida vai além da economia. Ele argumenta que a própria construção da identidade humana mudou drasticamente nos últimos séculos. Antes, a identidade era estruturada em torno de papéis fixos — gênero, profissão, religião — um modelo que predominou até os séculos XV e XVI.
Depois, veio a busca pela autenticidade, onde o indivíduo passou a querer se diferenciar dos demais, criando uma identidade "única". Agora, com a digitalização e a fragmentação das estruturas sociais, vivemos em um período onde as antigas categorias explodiram.
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"Hoje, a identidade se tornou fluida e dinâmica, uma espécie de performance contínua. Não somos mais apenas 'pais', 'médicos' ou 'engenheiros'. Somos múltiplas coisas ao mesmo tempo, nos adaptando constantemente ao contexto em que estamos inseridos", explica Hermida.
Esse colapso das antigas formas de identidade reforça a necessidade de novas estruturas de governança, que não sejam estáticas e possam evoluir conforme as necessidades das comunidades que as utilizam.
No debate entre setor público e setor privado, Hermida propõe um "terceiro caminho", que ele chama de paradoxo magnético: um modelo que não dependa exclusivamente de governos burocráticos nem de corporações guiadas pelo lucro.
A ideia, que fundamenta a criação e as operações da Sthorm, é criar redes autônomas de governança, estruturadas através de tecnologias como blockchain, smart contracts e finanças descentralizadas (DeFi). Esses sistemas permitiriam que comunidades se autogerissem, sem necessidade de um governo central ou de uma empresa controladora.
"As leis podem ser quebradas, mas protocolos não", argumenta Hermida. "Um governo pode mudar uma regra de acordo com seus interesses políticos. Mas um sistema de governança baseado em blockchain, por exemplo, não pode ser alterado arbitrariamente. Ele opera com base na transparência e na imutabilidade."
Construindo o futuro sem rupturas violentas
Diferente de outras teorias revolucionárias, que pregam a destruição dos sistemas atuais, Hermida acredita em uma "revolução suave", onde a transição ocorre sem violência ou rupturas bruscas.
"Não precisamos destruir o que já existe, mas sim criar alternativas melhores e mais eficientes", afirma. "O objetivo é potencializar as ferramentas que temos hoje para construir um mundo mais justo e sustentável."
Para isso, ele propõe que essas novas formas de governança sejam intuitivas e fáceis de adotar, permitindo que as pessoas interajam naturalmente com elas no dia a dia, sem precisar entender os complexos detalhes técnicos por trás do sistema.
Com o avanço das sociedades start-up, cidades experimentais e governos digitais, a visão de Hermida se torna cada vez mais real. O futuro da governança pode não estar nos Parlamentos ou nos Conselhos de Administração das megacorporações, mas sim em redes descentralizadas, onde a tecnologia substitui a burocracia e a política pela transparência e pela eficiência.
"Estamos vivendo uma transição inevitável", conclui Hermida. "Aqueles que não perceberem isso agora serão deixados para trás."
Confira a entrevista completa:
Pablo Lobo e Mariano Lopez Hermida, fundadores da Sthorm
Identidade ao longo da história
Cointelegraph Brasil (CTBR): Identidade e sistema financeiro, como estes temas se convergem?
Mariano Lopez Hermida (MLH): O foco está em duas grandes áreas: primeiro, como a identidade foi moldada por "tecnologias" históricas, como a sinceridade e a autenticidade, e como isso colapsou no século XXI. Em segundo lugar, como a tecnologia financeira se relaciona com essa transformação. A ideia é conectar esses temas para entender como nos posicionamos no mundo atual.
CTBR: Em nossa conversa você citou a "sinceridade" como primeira tecnologia de identidade. O que isso significa?
MLH: A sinceridade era o modelo dominante até os séculos XV e XVI. Nela, a identidade estava vinculada a papéis sociais herdados: ser pai, médico, cristão, ou definir-se por gênero e família. Quando perguntavam "Quem é você?", a resposta era uma lista de funções pré-estabelecidas. A identidade era estática, um compromisso com o que a sociedade esperava de você desde o nascimento.
CTBR: E como a "autenticidade" surge como segunda tecnologia?
MLH: A autenticidade emerge quando a identidade deixa de ser sobre encaixe e passa a ser sobre originalidade. As pessoas começam a buscar diferenciação: em vez de casamentos arranjados, procuram "almas gêmeas"; os pais incentivam filhos a serem "únicos". A identidade torna-se um projeto individual, não mais herdado. É a transição de "sou um médico" para "sou alguém que escolheu ser médico por paixão".
CTBR: E como isso se transforma no século XXI?
MLH: A modernidade e a pós-modernidade fragmentaram essas categorias. Hoje, a identidade é fluida, caótica e multifacetada. Vivemos um colapso das estruturas tradicionais, o que exige novas formas de entendimento. É aqui que entra o Pro-PCP, um conceito emergente que responde a essa multiplicidade, ligando a construção identitária ao branding pessoal.
CTBR: Branding pessoal? Explique essa analogia.
MLH: Assim como empresas criam marcas para se diferenciar, hoje nos construímos como "produtos" únicos. Não se trata apenas de ser diferente ou seguir papéis prévios, mas de fazer da própria existência um exercício contínuo de autodefinição. Nossa identidade é performática, moldada por escolhas conscientes e até por algoritmos.
CTBR: Você mencionou o termo "propelístico". O que significa?
MLH: (Risos) É uma provocação para ilustrar como essa construção é dinâmica e às vezes contraditória. Mas prefiro não aprofundar aqui — como disse na palestra, corremos o risco de perder a atenção de todos. O importante é entender que estamos em uma transição, e isso nos leva ao próximo tema: a tecnologia financeira.
NFTs e descentralização
CTBR: Perfeito. Como a Sthorm se relaciona com essa discussão?
MLH: A Sthorm não é só sobre dinheiro ou blockchain. Ela reflete e acelera a mesma fluidez que vemos na identidade. Moedas digitais, bancos descentralizados e até NFTs são expressões de como as estruturas rígidas do passado estão cedendo espaço a modelos mais flexíveis. Mas isso é assunto para a próxima parte da conversa...
CTBR: Mariano, você mencionou que a tecnologia financeira está ligada à teoria do valor. Como essas ideias se conectam?
MLH: A teoria do valor explica como atribuímos significado ao que é valioso. Historicamente, há duas correntes principais. A Teoria do Valor-Trabalho, defendida por Adam Smith e Marx, afirma que o valor vem do esforço humano empregado na produção. Já a Teoria do Valor Subjetivo inverte essa lógica: o valor é definido pelo desejo do mercado, como vemos em diamantes ou cartas de Pokémon, cujo preço reflete escassez e demanda, não trabalho.
CTBR: E como isso se aplica às finanças descentralizadas (DeFi)?
MLH: As DeFi são a materialização prática do valor subjetivo no século XXI. Com o Bitcoin em 2009 e os smart contracts, criamos sistemas onde o valor não depende de intermediários, mas da confiança coletiva em algoritmos e redes peer-to-peer. Serviços como empréstimos e liquidez compartilhada surgem sem bancos centrais, refletindo uma economia baseada em percepções descentralizadas de valor.
O Estado está falido
CTBR: Você também falou sobre o enfraquecimento da tecnologia estatal. O que isso significa?
MLH: O Estado tradicional está perdendo sua capacidade de cumprir promessas básicas, como garantir estabilidade econômica ou legitimidade democrática. A economia estatal enfrenta crises de dívida sistêmica, e a democracia, como sistema, está sob pressão. Isso não é uma condenação ideológica, mas uma observação: até o capitalismo, antes visto como infalível, mostra fissuras, como a concentração de riqueza e a insustentabilidade fiscal.
CTBR: Qual seria a alternativa a esses sistemas?
MLH: Não se trata de substituí-los, mas de reequilibrá-los. O século XXI exige estruturas adaptativas. Um exemplo é o conceito de anti-fragilidade, que propõe sistemas que não apenas resistem a crises, mas se fortalecem com elas.
CTBR: Anti-fragilidade? Como isso funciona na prática?
MLH: Imagine dois sistemas: um resiliente, como um carro que quebra e é consertado para funcionar igual antes, e um anti-frágil, que, após um choque, se torna mais robusto. Por exemplo, uma economia que, após uma recessão, não só se recupera, mas reformula suas regras para prevenir futuras crises. A tecnologia estatal do futuro precisará dessa qualidade para lidar com catástrofes naturais, tensões sociais e colapsos financeiros.
CTBR: E como as finanças descentralizadas se relacionam com essa anti-fragilidade?
MLH: As DeFi são um experimento anti-frágil. Sistemas como Bitcoin foram testados em crises e saíram mais fortes. A ausência de um controle central permite que a rede se adapte organicamente a ataques ou quedas de mercado. É uma resposta à fragilidade dos bancos tradicionais, que dependem de salvamentos estatais para sobreviver.
CTBR: Por fim, você acredita que essas mudanças são inevitáveis?
MLH: São necessárias. O mundo está mais complexo, e sistemas rígidos estão falhando. A anti-fragilidade não é uma utopia, mas uma estratégia de sobrevivência. Seja nas finanças, na governança ou na economia, precisamos de estruturas que aprendam com as crises, não que apenas as reparem.
CTBR: Mariano, você mencionou uma tensão entre classes conservadoras e revolucionárias na política contemporânea. Como essa dinâmica se manifesta?
MLH: É um conflito estrutural. As classes conservadoras buscam a perfeição do sistema existente por meio de ajustes incrementais – como reformar leis ou otimizar instituições. Já as classes revolucionárias questionam as bases do sistema, propondo reinvenções radicais. Essa tensão gera paradoxos, como a ideia de que "a esquerda virou a nova direita", ou vice-versa. Por exemplo, vemos esquerdistas apoiando Trump ou políticos usando métodos digitais alheios a suas ideologias tradicionais. É uma resposta à crise de identidade da governança atual.
CTBR: E o que seria o "paradoxo magnético" que você citou?
MLH: É a busca por um terceiro caminho que escape da dicotomia entre setor público e privado. O setor privado é movido pelo lucro, e o público, por ideologias instáveis. O paradoxo magnético propõe modelos híbridos, como sociedades start-up ou espaços de rede, que combinam autonomia local com descentralização digital. Esses experimentos tentam equilibrar inovação e estabilidade, algo que sistemas tradicionais já não conseguem fazer sozinhos.
Descentralização radical do poder
CTBR: Como esses novos modelos funcionam na prática?
MLH: As sociedades start-up, por exemplo, são microecossistemas de governança que testam regras em pequena escala – como cidades autônomas ou zonas econômicas especiais. Já os espaços de rede usam blockchain e protocolos digitais para criar organizações sem hierarquias centralizadas. A governança cibernética vai além: propõe sistemas automatizados, onde decisões são tomadas por algoritmos transparentes, não por burocratas. São respostas à fragilidade dos Estados nacionais.
CTBR: Você também destacou a diferença entre leis e protocolos. Por que isso é relevante?
MLH: Leis dependem de fiscalização humana e podem ser burladas – um político corrupto ou um cidadão que encontra brechas legais. Protocolos, por outro lado, são regras técnicas embutidas em sistemas digitais. Não há como violá-los: se você tentar transferir Bitcoin sem saldo, a rede simplesmente rejeita a transação. Por isso, movimentos como o "não confie, verifique" ganham força: defendem que a transparência tecnológica é mais eficaz que a governança tradicional.
CTBR: Essas ideias parecem disruptivas. Como elas impactam a economia e a identidade?
MLH: Estamos vendo uma redefinição do contrato social. Se antes o Estado era o único garantidor de direitos, hoje protocolos digitais e comunidades autônomas assumem papéis semelhantes. Na economia, criptomoedas desafiam bancos centrais; na identidade, sistemas de reputação baseados em blockchain substituem certificados governamentais. O risco é a fragmentação, mas também há oportunidades para modelos mais ágeis e inclusivos.
CTBR: E qual é o próximo passo nesse debate sobre tecnologia estatal?
MLH: Na Sthorm, e em todas as iniciativas que trabalhamos, como a Planetary X, estamos trabalhando em iniciativas práticas, como plataformas de governança colaborativa e laboratórios de políticas públicas digitais. A ideia é criar protótipos de sistemas anti-frágeis – que aprendem com crises – e integrá-los a estruturas existentes. Não se trata de destruir o Estado, mas de reprogramá-lo para o século XXI.